Marco Carvalho – Hoje Macau,
opinião
De todas as ficções
e convenções com que o Homem se apetrechou, o tempo é a mais subtil por ser
também a mais substancialmente enraizada. É uma luta congénita, tão velha como
a própria ideia de humanidade (de vida até, porventura), esta que mantemos com
a sucessão dos dias e das noites, com a mecânica das estações e com a
incessante metamorfose daquilo que no Universo nos é mais particular, o corpo e
o espaço que habitamos.
Do indizível
confronto despontaram duas das mais intrincadas e obscuras manifestações do
engenho humano, o calendário e a religião. À extensão cronológica do tempo o
Homem respondeu com a ampulheta na inglória tentativa de regrar o ingovernável
agastamento do rosto, os cabelos que embranquecem. À extensão ontológica do
tempo, o Homem respondeu com um panteão de divindades e a promessa improvável
de uma redenção que mais do que resgatar o crente da inevitabilidade da morte,
o liberta dos grilhões do tempo. Imprecisos e ilusórios, deuses e relógios são
os instrumentos com que o Homem se dotou a si mesmo para se arrogar acreditar
que tem, de um ou de outro modo, a marcha do Universo sob controlo.
Por mais dissonante
que a perspectiva seja, não há que negar uma certa genialidade a quem teve a
ideia de fatiar o tempo e de adoptar a revolução que a Terra cumpre em torno do
Sol como a medida de todas as coisas. Um ano é período suficiente para que a
esperança, tal como o cereal nos campos, desponte e esmoreça, mas também para
que o mais determinado dos batalhadores sucumba ao desgaste acumulado e
entregue os pontos. A mais deliciosa das fantasias cronológicas a que o Homem
se habituou é a que se materializa no final de cada ano e se conjuga com uma
certa omnisciência do tempo. A 31 de Dezembro poucos são os que não se entregam
animalescamente à crença de que doze badaladas bastam para que se opere um
milagre de renovação, que à mudança de número corresponderá por prestidigitação
uma mudança de hábitos, posturas e valores. Ingenuamente anti-tétrico, o
exercício não é de todo contraproducente, desde logo porque tem a si inerente
um esforço de auto-análise, o que por si só é mais do que alguma vez se poderá
dizer sobre quem nos governa.
Na lacónica
mensagem de Ano Novo que espalhou pelas redacções dos jornais, Chui Sai On
imprecou banalidades. Nada a que os residentes de Macau não estejam já
habituados, poder-se-á pensar. O estranho, desta feita, é que o Palácio da
Praia Grande não se tenha sequer esforçado por mascarar a grassa falta de
originalidade dos votos do Chefe do Executivo para 2014. A assinatura é a de
Chui Sai On, mas o conteúdo da mensagem – anódino e genérico – chega-nos de
chofre de Pequim. A 18 de Dezembro, Xi Jinping lembrou a Chui Sai On que a
sociedade de Macau se depara com diferentes problemas, que há exigências a que
é necessário dar resposta e que há espaço para o aperfeiçoamento das acções
dinamizadas pelo executivo da RAEM. O Chefe do Executivo plasmou os ditames na
mensagem de Ano Novo com uma ligeireza que chega a soçobrar a indiferença, como
se Macau – as ruas atafulhadas de gente, as rendas altas, os pequenos negócios
sem futuro, o património e a memória histórica em risco, o caos no trânsito –
não fosse mais do que uma fórmula política ou uma ficção constitucional. Um
executivo que governa o circunstancial pelo olhos dos outros não respeita e não
se dá ao respeito.
O Chefe do
Executivo já habituou a população que governa à ausência e ao silêncio. Se há
uma marca de água que define os quatro anos do consulado de Chui à frente dos
destinos da RAEM ela é, sem dúvida, a da crónica falta de capacidade para
decidir. Incapaz de se afirmar, de contrariar poderes instituídos, de decidir
com pulso, o governo Chui Sai On 2.1 refugiou-se no expediente das consultas
públicas, dos conselhos consultivos e nulidades que tais para disfarçar a
ausência de norte governativo. Sem projecto claro de governação, sem solidez
executiva, mas alimentada pelo ‘superávit’ económico gerado pelos casinos e
ainda bafejado pelo beneplácito de Pequim – a quem a terra prometida da ilha de
Hengqin abriu férteis janelas de oportunidades – uma liderança débil e autista
vai sobrevivendo.
Ainda que não tenha
o gingante carisma do seu antecessor, Chui Sai On tem, de certo modo, tarefa
mais fácil à frente do governo que a que tinha Edmund Ho. Se não herdou de Ho
Hau Wah uma locomotiva oleada, o Chefe do Executivo embarcou pelo menos num
comboio em andamento: a economia mantém-se possante e desassombrada, os
visitantes assomam a Macau em números nunca vistos, o fantasma de calamidades
com a destrutiva densidade de uma pneumonia atípica pouparam a Região e nem os
tufões incomodaram Chui Sai On com a feroz saciedade com que se insinuaram
durante os dois mandatos de Edmund Ho. Não fosse a saúde financeira da economia
do território benesse suficiente, o terceiro elenco governativo da RAEM conta
também a seu favor com uma conjuntura política que é amplamente menos hostil e
depredativa do que poderia, em teoria, ser. Por um lado, porque os frutos da
política de liberalização do jogo começam agora a fazer-se notar com um impacto
impossível de escamotear e casa onde há muito pão ninguém ralha e ninguém quer
ter razão. Por outro, porque a Chui Sai On foi dado o beneplácito de quase
governar sem que uma força política organizada lhe fizesse sombra. Os
rudimentos de oposição que se materializaram em torno da Associação Novo Macau
durante a regência de Ho Hau Wah implodiram no momento em que o organismo se
tornou numa espécie de hidra com sintomas de esquizofrenia democrática, um
bicho-de-sete-cabeças sem liderança segura e sem um projecto político que possa
reflectir mais do que interesses e caprichos pessoais.
Com tudo para
governar com vigor exemplar, o executivo de Fernando Chui Sai On comprometeu
uma quadratura governativa favorável com doses de silêncio, distanciamento e
inacção inexplicáveis. Nem uma inofensiva lei de defesa dos direitos dos
animais, que aparentemente não teria lesado mais do que os interesses óbvios, o
executivo conseguiu promulgar sem se afundar no ilusório labirinto das
consultas públicas onde nunca se sabe ao certo quem é o público consultado. O
laboratório de autonomia que se materializou há catorze anos com a constituição
da Região Administrativa Especial está hoje inegavelmente enfraquecido pela
relutância deliberativa que se apoderou do Palácio da Praia Grande. Um fraco
rei, já dizia Camões, faz fraca a forte gente e não há mudança de ano que valha
a Macau. Dois mil e catorze é o ano em que a RAEM verá certamente confirmado na
liderança Fernando Chui Sai On, o Chefe do Executivo com medo de existir.
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