João Manuel Rocha - Público
Perseguições e
assassínio de muçulmanos sucedem-se desde o início do ano. Milícias cristãs
vingam-se de meses de abusos. Amnistia Internacional critica falta de
"vigor" das forças internacionais.
Soba Tibati mal
podia andar por causa do reumatismo e não conseguiu fugir quando milícias
anti-balaka atacaram em Boyali, aldeia a cerca de 130 quilómetros a noroeste de
Bangui. “Decapitaram-no à minha frente, sentado numa esteira de palha, debaixo
de uma árvore, fora da nossa cabana”, contou o filho, Dairu, que perdeu também
outros 12 familiares, entre eles sete primos, incluindo uma bebé de seis meses.
No ataque foram
mortos 30 muçulmanos. Foi a 8 de Janeiro, logo depois de as forças Séléka,
coligação de antigos rebeldes muçulmanos, que governou e impôs o terror no país
entre Março e Dezembro de 2013, ter abandonado Boyali. O caso da família de
Dairu, que ferido numa coxa conseguiu fugir, é um dos muitos documentados num
relatório divulgado esta quarta-feira pela Amnistia Internacional sobre
“limpeza étnica” de muçulmanos na parte ocidental da República Centro-Africana.
Centenas de civis
muçulmanos foram mortos e largos milhares têm sido forçados a fugir das
perseguições das milícias anti-balaka, predominantemente formadas por cristãos
que serão movidas por sentimentos de vingança pelos anteriores massacres da
coligação Séléka. Organizações como a Human Rights Watch também já alertaram
para o cenário de toda a população muçulmana, calculada em 15% do total, ter de
deixar o país.
A Amnistia
documentou repetidos ataques e actos de terror contra muçulmanos civis
ocorridos em Janeiro em Bouali, Boyali, Bossembélé, Bossemptélé, Baoro e Bawi,
e também na capital, Bangui. E recolheu informações que considera credíveis
sobre ataques em Yaloke, Boda e Bocaranga. “Para além de causarem morte e
destruição, os ataques contra muçulmanos foram cometidos com a intenção
declarada de forçar uma saída do país”, indica a Amnistia.
Muitos anti-balaka
consideram que os muçulmanos são “estrangeiros” que deveriam ser mortos ou
abandonar o país. Os seus actos de violência levaram já à partida forçada de um
elevado número – dezenas de milhares, segundo os investigadores no terreno.
“Muitas localidades estão agora esvaziadas dos antigos habitantes muçulmanos”,
denuncia a organização de direitos humanos, que classifica a situação como uma
“tragédia de proporções históricas” que causa “danos tremendos” ao país e é um
“precedente terrível” para a região.
“Chacinadas à nossa
frente”
Exemplos da fúria sectária em nome de religião, em que à violência se responde com violência, não faltam. Em Baoro, cidade do noroeste, Oure, uma mulher muçulmana viu os quatro filhos e três sobrinhos, todos rapazes com idades entre oito e 17 anos, serem mortos pelos anti-balaka. “Mataram os meus filhos sem piedade”, contou. Oure, as duas irmãs, a mãe de 75 anos e sete dos mais novos da família tinham saído de casa para irem à mesquita, quando foram interceptados por uma milícia. “As crianças foram chacinadas à nossa frente”, disse, a soluçar. Foi a 26 de Janeiro.
Um dos ataques mais
mortíferos aconteceu em Bossemptélé, onde, a 18 de Janeiro, um dia após os
Séléka terem partido, depois de vencida a resistência dos poucos homens armados
que ficaram, pelo menos cem muçulmanos, quase todos civis, foram mortos, entre
eles mulheres e idosos. “Em muitos casos os ferimentos mostram que as vítimas
foram alvejadas a curta distância”, disse um médico que assistiu feridos e
observou cadáveres.
Um líder religioso
local, imã Mahajir, 76 anos, contou à Amnistia que um filho se escondera
debaixo da cama porque os anti-balaka estavam a matar todos os homens, mas foi
encontrado e levado para um mercado onde o assassinaram a tiro. Ao genro
mataram-no com uma catanada na cabeça. Mahajir agachou-se contra a parede “para
lhes mostrar que não era ameaça para ninguém” mas um dos membros da milícia
alvejou-o três vezes, duas no abdómen e uma num braço. Outro dos filhos levou-o
para a mata e depois para junto da estrada, de onde, disse, “cristãos de bom
coração o levaram para o hospital”. Dois dias depois, em Bossemptélé, foram
mortas quatro muçulmanas que tinham sido escondidas em casa de uma família
cristã.
“Invariavelmente,
são civis que têm suportado o peso da espiral de violência intercomunitária”,
destaca a Amnistia. Nos ataques documentados pela organização pelo menos 200
muçulmanos foram mortos, centenas feridos. Numerosos cristãos perderam também a
vida em represálias. O caso de Bayali confirma o carácter revanchista da
violência. No mesmo dia em que Soba Tibati e os familiares foram mortos, os
Séléka e civis muçulmanos armados voltaram, mataram cristãos e incendiaram
casas. Seis dias depois, os anti-balaka regressaram e assassinaram seis membros
de uma família muçulmana, todos mulheres e crianças.
“Não se escondem”
Donatella Rovera, conselheira sobre situações de crise da Amnistia Internacional, duas décadas de experiência no acompanhamento de conflitos, encontrou na República Centro-Africana uma situação diferente, que a impressionou. Ali, os defensores da limpeza étnica “não se escondem, dizem abertamente: nós queremos expulsá-los do país”, afirmou, numa entrevista telefónica ao PÚBLICO, a partir de Bangui.
Os muçulmanos deste
país encravado entre o Chade, o Sudão, o Sudão do Sul, a República Democrática
do Congo, o Congo e os Camarões, são a minoria de uma população que as Nações
Unidas estimavam em 2012 em 4,6 milhões de pessoas. Os cristãos serão 50% e os
seguidores de credos indígenas rondam os 35%.
As preocupações com
a violência sectária levaram o Conselho de Segurança das Nações Unidas a
autorizar o envio de forças de paz. Estão no país, em Bangui e noutras cidades,
5400 efectivos de uma missão da União Africana e 1600 soldados franceses
chegados em Dezembro. Para o início de Março está previsto o envio pela União
Europeia de 500 militares.
A sucessão impune
de assassínios, violações e pilhagens levou inúmeros muçulmanos a partirem para
os Camarões e o Chade, o que agravou os problemas de abastecimento alimentar
porque – explicou um correspondente da BBC – eram eles a base da economia
local, com expressão relevante em sectores como a pecuária. As organizações
Oxfam e Action Against Hunger indicam que em Bangui permanecem menos de uma
dezena de grossistas e que a maior parte admite partir, o que agravaria a
escassez de alimentos básicos, tornando ainda mais penosa a situação de uma
população que, segundo as Nações Unidas, come uma única vez por dia.
O Programa
Alimentar Mundial iniciou esta quarta-feira uma ponte aérea entre Doula,
Camarões, e Bangui para transportar 1800 toneladas de víveres, o necessário
para alimentar 150 mil pessoas durante um mês. Trata-se, explicou à AFP o
porta-voz Alexis Masciarelli, de uma das mais importantes operações aéreas de
emergência dos últimos tempos. Não é, apesar disso, mais do que um “balão de
oxigénio”, admitiu.
Dados das Nações
Unidas indicam que 1,3 milhões de pessoas precisam de ajuda alimentar imediata,
principalmente as mais de 800 mil que estão em campos de deslocados, para cima
de metade em Bangui. Quando Michel Djotodia, que presidiu à República
Centro-Africana na fase Séléka, deixou o poder, a 10 de Janeiro passado, o
número de deslocados e refugiados era já quantificado em mais de 900 mil.
"Bandidos por
toda a parte"
A limpeza étnica é o capítulo mais recente da tragédia em que está mergulhada a tradicionalmente instável ex-colónia francesa, um dos países menos desenvolvidos do mundo. À tomada de poder pela coligação Séléka sucederam-se perseguições que custaram a vida a milhares de cristãos. “A falta de lei e natureza abusiva do seu governo deu origem a violência sectária e a ódio sem precedentes, com muitos cristãos a atribuírem a responsabilidade dos abusos da Séléka à minoria muçulmana no seu todo”, considera a Amnistia.
O medo, a raiva e o
desejo de vingança estimularam o aparecimento das milícias anti-balaka, que
surgiram como grupos de auto-defesa contra os Séléka e das quais farão parte
membros das Forças Armadas fiéis a François Bozizé, o Presidente afastado em
Março de 2013. Quando os Séléka foram acantonados pelas forças francesas,
encontraram campo livre para perseguirem muçulmanos. Os anti-balaka são
reconhecíveis, segundo a AFP, por colares “anti-balas AK”, que os protegeriam
das espingardas de assalto AK47. A expressão anti-balaka significa também em
língua sango “anti-catanas” ou “anti-machados”. Estas milícias “não são algo de
estruturado, são grupos de bandidos que actuam a nível local, espalhados um
pouco por toda a parte, que fazem lei”, explica Donatella Rovera.
O comandante da
força francesa no terreno, general Francisco Soriano, referiu-se na
segunda-feira aos anti-balaka como “os principais inimigos da paz” e disse que
serão tratados como “bandidos”. Uma atitude mais activa para com as milícias é
o que reclama a Amnistia Internacional, que acusa os militares estrangeiros de
terem sido lentos a ocupar o vazio criado pela retirada dos Séléka. “Cidade
após cidade, à medida que os Séléka partiram, os anti-balaka avançaram e
lançaram violentos ataques à minoria muçulmana”, denuncia o relatório.
A investigadora da
Amnistia considera que a chave para travar a limpeza étnica está nas mãos das
forças internacionais. “Mais forças são sempre necessárias”, disse, mas,
importante mesmo, é que as que já estão no terreno sejam usadas “de maneira mais
eficaz”. “Houve uma falha na avaliação da gravidade da situação. A avaliação
que fizeram não acompanhou a evolução da situação no terreno. Não estavam onde
eram necessárias e não agiram com o vigor necessário”, critica, pedindo
vigilância, quer para evitar novos massacres e perseguições nas zonas onde já
ocorreram, quer para impedir que comecem, designadamente na zona oriental, onde
até agora os muçulmanos foram poupados a actos de vingança.
Foto: O homem na imagem
diz estar à procura de muçulmanos para os matar ISSOUF SANOGO/AFP
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