A ditadura que
sobreveio ao golpe de 1964 produziu 426 mortos e desaparecidos. A maioria das
mortes “oficiais” foi justificada por um artifício do regime militar: uma
medida administrativa designada “auto de resistência”, ou “resistência seguida
de morte”. Era o salvo-conduto para que policiais matassem opositores do
regime: o simples registro de um “auto de resistência” relegava às gavetas da
polícia a investigação sobre o homicídio.
Quase 30 anos passados da posse do primeiro governo civil, o ato administrativo
continua intocado e é considerado legítimo por autoridades policiais e
judiciárias. Hoje, na mira da arma da policial está, em grande maioria, uma
população civil jovem, majoritariamente negra e, não raro, sem antecedentes
criminais.
O auto de resistência segue como entulho da ditadura. A motivação política foi
substituída por um forte viés social. Em abril de 2008, ao justificar o
assassinato de nove pessoas pela PM na favela de Vila Cruzeiro (Rio), o coronel
Marcus Jardim assim expressou a filosofia que norteia esses assassinatos: “A PM
é o melhor inseticida social.”
A ideia que legitima a ação de maus policiais é a de que pobreza, cor da pele e
criminalidade são sinônimos. A sociedade incorporou esses preconceitos – ou os
preconceitos da sociedade contaminaram as policias? A geografia desses
assassinatos prova isso. O relatório “Segurança: tráfico e milícia no Rio de
Janeiro” examinou 12.560 autos de resistência ocorridas no Rio na década de 90
e concluiu: todas as mortes em ações policiais ocorreram nas favelas; 65% dos
assassinados levaram pelo menos um tiro nas costas ou na cabeça, ou seja, foram
sumariamente executados. Os mortos foram sentenciados à morte num julgamento em
que o policial é o juiz e o carrasco.
Entre janeiro de 2010 e junho de 2012, 2.882 pessoas foram mortas pela polícia
nos estados do Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e São Paulo,
numa média de três por dia (no ano passado chegou a cinco). Os EUA, no mesmo
período, tiveram 410 desses casos. Em Nova York, a polícia atirou em 24 pessoas
e matou oito em 2011. Naquele ano, o Rio teve 238 mortos por policiais; em São
Paulo, 242.
Em 2012, eu e os deputados Fabio Trad (PMDB-MS), Protógenes Queiroz (PCdoB) e
Miro Teixeira (Pros-Rio) apresentamos à Câmara projeto de lei (PL 4471) que
acaba com o auto de resistência; obriga a preservação da cena do crime, a
perícia imediata e a coleta de provas; e define a abertura de inquérito logo
após as mortes cometidas por policiais. Fica vetado também o transporte das
vítimas em “confronto” com os agentes, que devem chamar socorro especializado.
O estado de São Paulo, no ano passado, tomou medidas para coibir a violência
policial, em resposta a uma realidade de elevação constante das mortes em autos
de resistência. Em 2012, o estado registrou 546 mortos, contra 439 em 2011.
Relatório da Human Right Watch de julho de 2013 registrou que, em 2012, 95% das
pessoas feridas em confronto e transportadas por policiais morreram no trajeto
ou no hospital. No início de 2013, o governo proibiu o registro dos autos de
resistência e impediu que os policiais socorressem as suas vítimas. Em um ano,
foi registrada queda de 39% dessas mortes no estado, e 47% das ocorridas na
capital.
A aprovação do projeto estenderá as medidas tomadas por São Paulo ao país. E
será um tiro de morte em um dos mais perversos entulhos que o país carrega da
ditadura, a licença para matar.
Paulo Teixeira*, em
Vermelho
* É deputado federal pelo PT de São Paulo
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