Aos gritos de “mata
logo” e de vários xingamentos, jovem negro com problemas mentais é torturado e
apedrejado até a morte. “Peçam perdão a Deus pelo que fizeram”, diz mãe do
garoto
O corpo negro
ensanguentado e o olhar assustado que você na foto é do menino Alailton
Ferreira, de 17 anos, cercado por um grupo armado com pedras, barras de ferro e
pedaços de madeira. Momentos depois, ele seria foi alvo de um espancamento
coletivo. Desacordado, foi levado ao hospital, mas não resistiu e morreu na
noite de terça-feira (8).
Aos gritos de “mata
logo” e de vários xingamentos, o espancamento aconteceu às margens da BR 101,
na tarde do último domingo (6), no bairro de Vista da Serra II, cidade de
Serra, a cerca de 30km da capital Vitória, no Espírito Santo. Só depois de duas
horas de muita violência, a Polícia Militar chegou ao local, colocou o jovem na
viatura e o levou até a Unidade de Pronto Atendimento. “Os policiais militares
descreveram no boletim de ocorrência que foi necessário utilizar spray de
pimenta para conter os populares” disse o delegado-chefe do DPJ, Ludogério
Ralff.
Acusações
O motivo do
linchamento foi causado por acusações controversas. Alguns disseram que o jovem
teria tentado estuprar uma mulher. Outros que ele seria suspeito de tentar
roubar uma moto e abusar de uma criança de 10 anos. Tudo ocorreu no domingo
(6), mas até esta quarta-feira, dia em que Alailton foi enterrado, não havia
qualquer denúncia ou relato de testemunhas, segundo a Polícia Civil.
O irmão contesta as
acusações e diz que o adolescente sofria de problemas mentais: “Ele chamou a
menina, ela se assustou e correu para chamar a família. Os familiares e
vizinhos correram atrás dele. Por isso as pessoas falaram que ele era
estuprador. Se ele quisesse roubar uma moto, teria feito no próprio bairro, mas
ele nem sabe pilotar”. Segundo o tio do jovem, foi um ato de covardia. “Ele
estava com uns problemas de saúde e ficava assustado com frequência”.
O morador Uelder Santos,
29, em entrevista para um jornal também colocou as acusações sob
suspeita: “Ninguém viu esse tal estupro ou mesmo noticias da suposta
vítima”.
“Peçam perdão a
Deus pelo que fizeram”, diz a Mãe
Em entrevista a um
jornal, a mãe de Alailton, a doméstica Diva Suterio Ferreira, 46, disse que o
filho teria sido vítima de uma injustiça: “Ele já foi preso por furto, usava
droga, mas não estuprou ninguém, jamais faria isso”. Cristã, disse que se apega
a Deus para socorrê-la nesse momento difícil: “Meu filho era amado, sonhava em
me dar uma casa. Dizia que queria um quarto para ele, um para mim e um para
irmã. Minha filha, de 11 anos, só chora, tem medo de sair à rua depois do que
aconteceu. Acredito na justiça divina. Peço que essas pessoas peçam perdão a
Deus pelo que fizeram ao meu filho”.
Violência endêmica
e elemento racial (nada) subjetivo
O escritório das
Nações Unidas apresentou nesta quinta-feira (10) um levantamento sobre as taxas
de homicídio em que conclui que as Américas são as regiões mais violentas do
planeta. O Brasil está entre países mais violentos. Das 30 cidades mais violentas
do planeta, 11 são brasileiras. Segundo a publicação, Maceió é a quinta cidade
do mundo com mais homicídios por cada 100 mil habitantes. A cidade de Vitória
do Espírito Santo, vizinha ao local onde Alailton foi assassinado por
populares, é a 14ª da lista mundial.
Não gosto de
suposições, por isso fico nas perguntas: qual seria o resultado de uma
amostragem com o recorte racial das vítimas desses homicídios em toda América?
Teríamos uma proporção parecida com a média brasileira, que aponta 70% de vítimas
negras?
Não sei se Alailton
estuprou alguém. Era mulher feita ou uma criança de 10 anos? Ambos os crimes
são gravíssimos. Mesmo que tenha sido uma “apenas” uma tentativa ou ainda que o
jovem tivesse problemas mentais, sem dúvida caberia alguma punição. E a Lei
prevê. Mas jamais um linchamento. Jamais!
E pior: nada leva a
crer que houve de fato o crime. Aliás, ao que parece (não sou investigador, nem
gostaria), ele teria sim sido “vítima de uma injustiça”, como disse a mãe
doméstica.
O fato de ser um
menino negro teria sido um elemento potencializador do ódio coletivo e da
precipitação de um julgamento instantâneo – acusação, julgamento, condenação e
execução: Foi ele! Pega ele! Só pode ter sido ele!?
E se fosse um
menino branco, a história teria tais requintes de crueldade e terminaria no
cemitério?
A bala não é de
festim, aqui não tem dublê!
O assassinato
covarde do menino negro Alailton Ferreira me fez lembrar dois filmes
norte-americanos muito famosos. O primeiro é o clássico “O
sol é para todos”, de 1962, que conta a história de Tom Robinson (Brock
Peters), um jovem negro que fora acusado de estuprar Mayella Violet Ewell
(Collin Wilcox Paxton), uma jovem branca. Atticus Finch, um advogado
extremamente íntegro, interpretado por Gregory Peck – que viria ganhar o Oscar
de melhor ator com esse trabalho, concordou em defendê-lo e, apesar de boa
parte da cidade ser contra sua posição, ele decidiu ir adiante e fazer de tudo
para absolver o réu. Nos Estados Unidos como aqui, sempre fora comum acusações
de estupros e outros crimes recaírem sobre negros, sem que haja grandes
contestações.
O outro filme, esse
mais recente (1996), faz ainda mais sentido com o momento que vivemos, inclusive
no nome:“Tempo de Matar”, que se passa em Canton no Mississipi, onde Carl Lee
(Samuel L. Jackson), um negro que, ao matar dois brancos que espancaram e
estupraram sua filha de 10 anos é preso, e um advogado branco Jake Brigance
(Matthew McConaughey ) e Ellen (Sandra Bullock) uma obstinada estudante de
Direito, ambos se voltam contra o preconceito e o racismo existente na
comunidade daquela cidade para defender o acusado.
Já no fim da trama,
quando tudo parecia perdido, afinal a cidade queria a condenação do acusado, no
Tribunal Jake solicita a todos os presentes que fechem os olhos e ouçam a ele e
a si mesmos, então ele começa a contar a história de uma garotinha que volta do
armazém, e de repente surge uma “pick-up” de onde saltam dois homens e a agarram,
eles a arrastam para uma clareira e, depois de amarrá-la, arrancam-lhe as
roupas do corpo e montam nela, primeiro um, depois o outro, eles a estupram
tirando toda a sua inocência com brutais arremetidas. Depois de acabarem, e de
ter matado qualquer chance daquele pequeno útero ter filhos, os dois rapazes
começaram então a usar a garotinha como alvo, acertando-a com latas cheias de
cerveja, cortando sua carne até o osso. Não satisfeitos, eles ainda urinaram
sobre ela, e com uma corda fazem um laço e a enrolamo no seu pescoço e num
puxão repentino a suspende no ar, esperneando e sem encontrar o chão até o
galho quebrar e, milagrosamente cair no chão. Nesse momento, eles a colocaram
na “pick-up” e, ao chegar em uma ponte, jogam-na de cima da mureta, de onde ela
cai de uma altura de 10 metros até o fundo de um córrego. Jake então pára a
história e pergunta aos presentes se conseguem vê-la, se conseguem imaginar o
corpo daquela garotinha estuprado, espancado, massacrado, molhado da urina, do
sêmen deles e do próprio sangue, e depois abandonado para morrer…
E novamente repete
para que todos façam uma imagem dessa garotinha, aguarda um instante e
pergunta: “Agora imaginem que essa garotinha é branca”!
Carl Lee é
inocentado pelo júri.
Ora, “impoluto
escrevente”, me perguntaria um dos meus algozes sempre presentes nos
comentários deste Blog: “Mas não está a criticar a ideia da justiça pelas
próprias mãos? Contraditório o exemplo deste filme, não?”.
E eu responderia:
Sim e não.
Sim. E essa é a
parte que não gosto no filme. Ele justifica a ideia de que, em alguns casos,
pode-se aceitar a justiça feita pelas próprias mãos. E não podemos tolerá-la em
hipótese alguma. Menos ainda quando o pressuposto é inexistente – como parece
ser neste caso do Espírito Santo.
E não.
Não por que faz
todo o sentido imaginar que, diante da violência sistemática, continuada e
explícita contra a população negra, não seria absurdo imaginar que em algum
momento pode haver reações, bastando para isso que aflore a percepção – por
parte da população negra, de que vivemos sim um estado de desigualdades e de
violência racial.
Mas se dirá:
Loucura! Radicalismo deste blogueiro afro-lunático racialista! E diante da
fúria democrata-gilberto-freyreana presente inclusive na parte bolchevique do
mapa, diria por fim:
Sempre caberá o
terrível e necessário pedido de reflexão feito pelo advogado branco, Jake
Brigance (Matthew McConaughey ), em Tempo de Matar:
“Agora imaginem que
essa garotinha é branca”!
Imagine que Alailton é branco!
Imagine que Cláudia é branca!
Imagine que Amarildo é branco!
Imagine que Douglas é branco!
Imagine que o menino torturado e amarrado nú em um poste na zona sul
do Rio de Jaineiro é branco.
Imagine que, quem a
polícia mata 3 vezes mais que negros, são os brancos.
Imagine um mundo
onde as pessoas pudessem viver em paz.
Consegue?
Na foto: Jovem
negro é espancado e morto por populares no Espírito Santo (Ilustração: Pragmatismo
Político)
Douglas Belchior, Carta Capital
– em Pragmatismo Político
Leia também: Morte de jovem negro choca menos que de jovem branco
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