Manuel
Carvalho da Silva* - Jornal de Notícias, opinião
O
aumento das desigualdades é, sem dúvida, um dos grandes temas de debate atual.
A sua dimensão chocante é de uma violência irracional face aos avanços
civilizacionais a que as sociedades se alcandoraram, aos meios materiais,
técnicos, científicos e comunicacionais hoje disponíveis. Nas últimas décadas,
a "desigualdade", sobretudo nos países mais desenvolvidos, atinge
níveis idênticos aos verificados antes da Grande Depressão de 1929. Os seus
efeitos negativos são profundos e vão desde a amputação do crescimento
económico potencial, aos impactos negativos na saúde e no bem-estar. Em
Portugal, há excessiva condescendência e permissividade perante a pobreza e as
desigualdades. Isso é um entrave ao nosso desenvolvimento.
A
nível internacional, argumenta-se que o aumento das desigualdades nos países
mais desenvolvidos, onde o rendimento das classes trabalhadoras estagnou ou
caiu durante os últimos 20 anos, se deve ao inexorável processo de globalização
da economia. Dizem-nos que as perdas salariais dos trabalhadores dos países
ricos são o contraponto do crescimento salarial dos trabalhadores dos países
pobres. Esta seria a nova divisão internacional do trabalho resultante da
liberalização comercial. Ao aumento da desigualdade dentro de cada país,
corresponderia assim uma diminuição da "desigualdade" entre países.
Esta
linha argumentativa é promotora da inação política, e esquece três dados
essenciais. Primeiro, tem havido aumentos salariais nos países mais pobres, mas
muito concentrado em países como a China, onde a luta laboral por melhores
condições se tem revelado intensa e com bons resultados para os trabalhadores,
embora silenciada no espaço público, por interesse do poder político chinês e
porque, no Ocidente, dá jeito esconder a expressão e os impactos dessas lutas.
Também
no contexto chinês encontramos o segundo dado propositadamente esquecido nos
debates sobre globalização. A China não é uma economia liberalizada e aberta
aos fluxos financeiros e comerciais como muitas vezes se argumenta, mas sim uma
economia em que o Estado, através do controlo de importantes partes da
economia, nomeadamente do sistema financeiro, tem a capacidade de dirigir a
economia como um todo.
Terceiro,
a suposta convergência de rendimentos verificada à escala internacional esquece
sempre a formidável concentração de rendimentos que se observa no topo da
escala. Entre 1988 e 2008, por cada dólar acrescido ao rendimento mundial, 44
cêntimos foram apropriados pelos 5% mais ricos. Se alargarmos a observação até
aos 10% da população do topo da escala, vemos que eles ficam com 60% de cada
dólar. O aumento das desigualdades não é, no fundamental, o resultado da
competição entre trabalhadores de diferentes nacionalidades, mas sim uma
disputa entre o comum dos trabalhadores e uma elite com expressões específicas
em cada país e com dimensão absolutamente internacionalizada.
Em
Portugal, as desigualdades não são uma inevitabilidade, ou mera decorrência da
integração na economia europeia e global e das mudanças tecnológicas. A
alteração da estrutura e do domínio da nossa economia, a ausência de uma
estratégia de desenvolvimento que aproveite capacidades e formações, as
fraturas geracionais no trabalho, a persistência em políticas de baixos
salários são causas concretas da alteração da estrutura e condições do emprego
e podem agravar ainda mais as desigualdades.
É
preciso colocar o trabalho, a sua organização e remuneração, no centro das
preocupações e do debate político. Temos um elevado nível de pobreza nas
crianças e nos adolescentes, em primeiro lugar, porque os seus pais (adultos
ainda jovens) são pobres. A sua pobreza resulta de auferirem baixos salários,
serem trabalhadores precários ou estarem no desemprego.
No
imediato, a luta pelo salário mínimo articulada com a redinamização da
contratação coletiva - não chega aumentar o SMN, pois se não houver contratação
coletiva o SMN torna-se salário nacional - constituem-se como os dois
instrumentos mais eficazes de combate às desigualdades e à pobreza. A
distribuição primária do rendimento deve estar no centro da luta social e
política.
*Investigador
e professor universitário
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