Martinho Júnior, Luanda
7
– A luta de libertação em África assumiu a contradição antagónica em relação ao
império, envolta num conjunto alargado de alianças com a revolução cubana na
América Latina e com o apoio de outros países Não Linhados (como por exemplo a
Jugoslávia) e Socialistas (como por exemplo a URSS, ou Alemanha do Leste).
Nem
mesmo a cisão no campo socialista, que atingiu em cheio os relacionamentos da
URSS com a República Popular da China, esmoreceu a intensidade das alianças
progressistas a partir da linha Dar es Salam –
Brazzaville, “inaugurada” com a vinda do Che para o Congo (a oeste do
Lago Tanganika).
Isso
aconteceu historicamente por que a sustentabilidade de sua prática só podia ser
exequível assumindo não só uma posição anticolonialista, (tendo em conta que a
potência colonial era uma potência vassala do império por via da NATO e do
sistema económico e financeiro global, uma potência que foi instrumentalizada e
teve expressão invulgar no terreno), mas por via dela, uma posição também
inequivocamente anti-imperialista, até por causa das envolvências da
inteligência elitista que havia de enfrentar, enfrentando ao mesmo tempo as
geoestratégias decorrentes da descolonização sob permissibilidade e controlo
que estava em curso em África, particularmente ao longo das décadas de 50, 60 e
70 do século passado.
Como
África era e é um continente periférico (senão mesmo ultraperiférico conforme
os Índices de Desenvolvimento Humano publicados anualmente pela ONU), no
terreno da luta os braços armados das organizações que compunham o movimento de
libertação teriam de recorrer à mobilização dos camponeses, no caso angolano
disputando espaço vital aos etno-nacionalismos, eles mesmo reféns dos
expedientes de agenciamento e vassalagem decorrentes do império e susceptíveis
à manobra fascista, colonial e neocolonial.
Nessas
décadas África assistiu por exemplo, ao que foi fomentado pelo colonialismo
francês (Argélia), ao que foi fomentado pelo colonialismo português (sobretudo
na Guiné Bissau, em Angola e em Moçambique), assim como ao que foi fomentado
pela instrumentalização do “apartheid” na África Austral e sua
constelação de “bantustões” e apêndices “híbridos”, como a
Rodésia do regime de Ian Smith, ou o Sudoeste Africano ocupado (Namíbia), ou
ainda os processos de contenção “flexível” tal e qual o protagonizado
pelos vários agentes da “guerra de fronteiras” em Angola.
Os
camponeses africanos, a classe mais oprimida, mais desfavorecida senão mesmo
marginalizada da ultraperiferia, eram (e ainda são) uma parte substancial da
antítese cultural humana em relação aos 1% que inscrevem seu poder dominante no
quadro da globalização fomentada pelo império no seguimento da IIª Guerra
Mundial, ou seja, as questões antropológicas definidoras dos estatutos de uns
(1%) e de outros (camponeses africanos), inscrevem-se diametralmente opostos na
dialética do processo imperialista de globalização neoliberal e, enquanto no
domínio as culturas eminentemente anglo-saxónicas são um recurso avassalador e
permanentemente enriquecido por novas “revoluções tecnológicas”, novas
filosofias, teorias e ideologias de recurso, bem como de novas práticas
indexadas a elas (num quadro cada vez mais refinado de inteligência elitista,
mas também propulsor de desequilíbrios de toda a ordem, de caos e de
terrorismo), os camponeses africanos constituem ainda hoje uma frente cultural
de resistência, inscrita no carácter da ultraperiferia e por isso também um dos
alvos preferenciais das pressões e jogos operativos neocolonialistas e
imperialistas, conforme o que se constatou com a história do MPLA na sua luta
até se alcançar a independência.
A
exploração do tribalismo, do divisionismo e do regionalismo foi feita em
momentos decisivos, como por exemplo em 1961, quando as autoridades coloniais
recorreram aos “fiéis bailundos” para com eles melhor poderem fazer
frente aos sangrentos levantamentos em curso, que davam sequência aos
levantamentos da Baixa do Cassange.
As
vulnerabilidades geoestratégicas do MPLA, que necessitava como todos os
agrupamentos, duma retaguarda que pudesse catapultar o seu esforço de
penetração da guerrilha para dentro de Angola, à procura de espaço vital de
implantação interior, recorrendo tanto quanto o possível às linhas de
penetração conformes ao sistema hidrográfico do país, inscreveram-se no quadro
das imensas dificuldades e obstáculos que havia a vencer na luta contra o
colonialismo e por isso o papel da mobilização dos camponeses era uma questão
crucial, até para suplantar e vencer os obstáculos quer da ementa colonialista
de “luta contra subversão”, quer os decorrentes da expressão dos
etno-nacionalismos agenciados e integrados pela internacional fascista.
A
doutrina materialista dialética que “armava” a inteligência e a acção
do movimento de libertação em África, teria de mobilizar, para além da vontade
indexada à superestrutura doutrinária e ideológica (quadro de direcção), os
processos antropológicos dos camponeses que iriam compor suas fileiras e
integrá-los nos processos de luta, um esforço ingente sem o qual seria
impossível enfrentar na prática a internacional fascista e os seus imensos
recursos formatados a partir da fermentação dos interesses expansionistas e
crescentemente globalizantes do próprio império, digestivo dum notável cortejo
de vassalos sobretudo na África Austral...
Quer
particularmente na Iª Região Político-Militar, quer nas IIIª e IVª Regiões
Político-Militares, a mobilização dos camponeses angolanos por parte do MPLA,
haveria de reinterpretar a capacidade de resistência dos camponeses, integrando
os processos culturais afins, em todos os momentos, factores e aspectos
práticos de luta.
Essa
integração foi muito importante para as questões de logística, para as questões
de movimento e defesa, para as questões que se prendiam ao esforço de
aprendizagem e ensino em plena campanha, como foi também muito importante para
as questões de geo-estratégia, incluindo ara melhor se detectarem os
inevitáveis processos de ruptura por implicação de agenciamento a partir dos
enormes recursos da inteligência elitista ao dispor da internacional fascista.
Dessa
época há que lembrar por exemplo, os sistemas de defesa periférica das bases
(desenho dos circuitos de sentinelas, uso de fossos utilizados na caça,
comunicação de alertas), até ao uso de vestuário feito a partir de cascas de
árvores, ou à exploração de minas de sal perdidas nas matas e savanas, ou à
pesca em pequenos cursos de água (com recurso à construção de pequenos açudes e
cestos para a captura de peixe, tudo isso a fim de vencer o isolamento
prolongado como ocorria na Iª Região Político-Militar, a que foi mais sujeita à
pressão da malha de ocupação militar colonialista, bem como das suas
intervenções militares e de inteligência, desde 1961 até ao 25 de Abril de
1974.
Foi
assim, nesse quadro, que ocorreram aos maiores esforços de infiltração por
parte da PIDE/DGS para dentro da Iª Região Político Militar, a partir de
centrais operativas situadas em Caxito, em Quibaxe e em Catete, que se
conectavam no terreno a:
Processos
inteligentes integrados nas unidades de quadrícula das Forças Armadas
Portuguesas, OPVDCA, (Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil de
Angola) e Guardas Rurais, com a instrumentalização dos Serviços de Informação
Militar e a formação de apêndices como os Grupos Especiais, as Tropas Especiais
e até uma “vanguarda”, a Vanguarda Salazar;
Processos
inteligentes por via da malha político-administrativa com vista ao controlo das
comunidades (que levou à formação dos “SCCIA”, Serviços de Centralização e
Coordenação de Informação de Angola);
Agenciamento
de fazendeiros e comerciantes, de modo a, entre outras medidas, expandir as
linhas de ocupação defensiva (defesas e fortins instalados nas fazendas) e
ofensiva, na direcção das bases da guerrilha;
Agenciamento
de capacidades humanas obtidas a partir da guerrilha, em processos decorrentes
de sua decomposição, vulnerabilidade, fragilização, ou isolamento.
Inteligência
em países circundantes a Angola, como no Zaíre sob o regime de Mobutu, ou na
Zâmbia no quadro das ambiguidades de Kenneth Kaunda, infiltrados pela Aginter
Press e pelas componentes do expediente secreto Albacora, reagrupando as
iniciativas da internacional fascista numa linha entre Luanda e Maputo, que
passava por Kinshasa, por Lusaka, por Salisbúria (Harare) e pela capital
económica do Malawi, Blantyre.
Desse
modo as autoridades coloniais portuguesas, com suas políticas de “luta
contra subversão”utilizando expedientes de “Acção Psicológica”,
conseguiram alguns êxitos na penetração rural da Iª Região Político Militar
isolada e enfraquecida, com a projecção de agentes e a passagem massiva das
mensagens afins.
Alguns
desses agentes indiciaram por suas trajectórias, ter vindo a tomar parte da
composição humana da tentativa de golpe de estado do 27 de Maio de 1977 já
depois da independência, evidenciando desse modo geoestratégias tão bem
definidas para os seus papeis, que propiciaram acção contra a linha dirigente
do MPLA após a independência, quando na Conferência de Lusaka haviam assumido,
contraditória e propositadamente, o reforço da linha progressista do Presidente
Agostinho Neto face à cisão da fracção sob as ordens de Daniel chipenda.
No
leste, com a montagem de processos divisionistas e tribalistas a partir de
circuitos de inteligência elitista na Zâmbia, Daniel Chipenda entre 1973 e 1975
viria a tirar partido de algumas franjas étnicas de guerrilheiros de origem
camponesa no MPLA (e também na FNLA) para providenciar à internacional fascista
o recurso à sua fracção, com efectivos que iriam ser aproveitados na formação
do “Batalhão 32”, “Búfalo”, das South Africa Defence Forces,
implicadas na “guerra de fronteiras”, enquanto os “Flechas”, sob as
ordens do Inspector da PIDE/DGS de nome Óscar Piçarra Cardoso, viriam a ser
aproveitadas para a formação do “Batalhão 31”…
Ambos
os batalhões integraram os efectivos que foram utilizados na Operação Savanah e
em muitas outras operações posteriores entre 1975 e 1992 pelo regime anacrónico
do “apartheid”, em reforço dos etno-nacionalismos dispostos às projecções
de “bantustões” na Namíbia e em Angola, conforme aos planos
desesperados de resistência da internacional fascista na África Austral.
Da
Conferência de Lusaka, onde a fracção de Daniel Chipenda, uma ruptura
etno-nacionalista do MPLA, evidenciou sua perspectiva de agenciamento às
inteligências elitistas da internacional fascista na África Austral, haveriam
de emergir as Forças Armadas Populares de Libertação de Angola, FAPLA, que
iriam escrever as páginas mais decisivas e heroicas da história contemporânea
de Angola, na luta contra o colonialismo, o “apartheid” e algumas das
suas sequelas.
O
grosso da mobilização das FAPLA recorreria à classe camponesa, tendo em conta a
natureza e a amplitude dos desafios.
Esse
manancial humano propiciou vitórias expressivas sobre a internacional fascista
e seus apoios internacionais, alguns dos quais implantados em Portugal, na
decorrência do golpe de 25 de Novembro de 1975, distinguindo-se entre todos o
recentemente falecido Mário Soares, perito em manobras típicas de hipocrisia,
de cinismo, de ambiguidade e de mentira, em conformidade aliás com os jogos das
potências ocidentais e da NATO nos seus relacionamentos arrogantes face ao
resto do mundo.
8
– As gloriosas FAPLA eram uma afirmação inequívoca de luta que mobilizou,
conjuntamente com a Organização de Defesa Popular (ODP), milhões de angolanos,
recorrendo à arma geo-estratégica, doutrinária, filosófica e ideológica do
materialismo dialético, contra a qual, expediente algum dos conceitos
estruturalistas da “luta contra subversão” poderia fazer frente.
O
Presidente António Agostinho Neto lembrava a propósito: “nós somos milhões
e contra milhões ninguém combate”!
Foram
esses milhões, uma importante fatia dos quais jovens camponeses oriundos de
todas as regiões do país, que tornaram Angola num bastião inigualável na luta
contra o “apartheid”, pois ainda segundo o Presidente António Agostinho
Neto, “na Namíbia, no Zimbabwe e na África do Sul, está a continuação da
nossa luta”…
Teria
sido impossível derrotar o “apartheid” sem a decisão dos Presidentes
António Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos em função da afirmação
socialista da República Popular de Angola e do quadro de alianças que
reforçaram o país enquanto bastião decisivo na Linha da Frente, em particular a
heroica aliança com Cuba e suas Forças Armadas Revolucionárias.
Foi
também nesse ambiente de luta que foi forjada substantivamente a identidade
nacional, na sequência do movimento de libertação em África alimentado pela
arma materialista dialética a que recorriam lucidamente as direcções das
modernas guerrilhas que emergiam, ainda que em Angola fosse tão forte o
agenciamento por parte dos múltiplos circuitos da inteligência elitista da
internacional fascista em vassalagem ao império, de agrupamentos
etno-nacionalistas que haveriam de ser a seu tempo derrotados, tal como de
fracções que procuraram subverter o rumo do MPLA.
Foram
precisas enormes transformações globais para que esse processo sofresse
notáveis condicionantes, que se reflectiram desde logo no Acordo de Bicesse, em
Maio de 1991.
O
fim do Partido do Trabalho, as alterações na Segurança do Estado e o fim das
gloriosas FAPLA que haviam saído vitoriosas dos campos de batalha, decorreram
dum ambiente sócio-político internacional que impôs
a “glasnost” neoliberal ao país, um processo que se prolonga até aos
nossos dias, inviabilizando o carácter socialista do estado, revertendo-o para
um carácter social-democrata inscrito numa economia capitalista e Bicesse foi
a “pedra de toque” nesse sentido, em grande parte às custas do
sentido histórico do movimento de libertação e dos revolucionários que deram o
corpo ao manifesto nesse caminho!...
Introduzido
o capitalismo neoliberal pela porta expedita de Bicesse, deu-se imediata
garantia ao choque neoliberal que haveria de traumatizar Angola entre 1992 e
2002, “somalizando-a” e à terapia neoliberal em curso…
É
claro que por tabela, são os substractos sociais camponeses que mais têm
sofrido na sua carne com esse longo processo, apesar de ser impossível em paz
qualquer veleidade de luta contra o subdesenvolvimento sem a sua mobilização,
sem o seu concurso, sem a sua implicação, pois meta alguma de desenvolvimento
sustentável, perseguindo trilhas geo-estratégicas de muito longo prazo, são
exequíveis sem eles!
No
quadro da terapia neoliberal, que se seguiu ao choque imposto a Angola entre
1992 e 2002, os ingredientes a partir do exterior passam pelo “soft
power” português com vista a uma decorrente assimilação de processos que
se foi refinando ao longo dos sucessivos governos post 25 de Novembro de 1975.
Esses
processos integram correntes neoconservadoras (saudosistas do passado e
ressabiados do colonialismo), como correntes inscritas em doutrinas que compõem
os expedientes capitalistas neoliberais, que vão desde seguidores de Milton
Friedman a Leo Strauss (doutrina do caos), ou a Gene Sharp conforme tenho vindo
a evidenciar.
Uma
parte das elites angolanas está “tocada” por esse “soft power”.
Esse
processo de aparente relacionamento bilateral manifesta-se por um quadro de
assimilações que tiram partido do facto de Angola se ter decidido a relações
especiais com Portugal, de forma a suprir dificuldades com os quadros para a
sua vida sócio-política, económica e financeira, algo à margem dos
relacionamentos com as classes camponesas do país, uma parte delas ainda não
suficientemente integrada nos modos de vida que paulatinamente se têm criado a
partir de 2002.
A
lógica com sentido de vida na sequência do rumo do movimento de libertação em
África, só poderá ter evidência maior com a mobilização dos camponeses
angolanos num quadro de paz, de consequente e abrangente diversificação da
economia, duma geoestratégia a muito longo prazo respeitadora da relação humana
com o espaço físico-geográfico e ambiental e num quadro de consistente e
persistente identidade nacional, que assuma uma visão patriótica e “de
esquerda”, algo que foge aos actuais parâmetros social-democratas filtrados
pelo processo de terapia neoliberal, que procura ultrapassar os traumas pela
pior das vias capitalistas: a que “promove” as portas escancaradas de
Angola!
Com
uma efectiva mobilização inteligente dos camponeses angolanos, será possível
essa visão patriótica, progressista e enunciar sem rodeios para todos os
angolanos: “Angola está em primeiro lugar”!
Fotos:
1 - A
direcção da COTONANG, uma empresa expoente da contínua opressão colonial dos
camponeses angolanos, que levou à revolta da Baixa do Cassange;
2 - Mapa
do sudeste angolano onde se travaram as maiores batalhas contra o colonialismo
e o “apartheid”; recorde-se que a presença das South Africa Defences
Forces ocorreu ali desde 1968 à assinatura do Acordo de Nova York, a 22 de
Dezembro de 1988;
3- O
acordo Alcora permitiu a exploração de serviços de inteligência da
internacional fascista em toda a África austral, na tentativa de enfrentar a
linha progressista implantada desde 1965, de Brazzaville a Dar es Salam;
4 - O
encontro dos Açores num quadro típico de “vassalagem soft
power” preparatório para a agressão dos Estados Unidos ao Iraque, Durão
Barroso, uma das caras dos sucessivos governos portugueses decorrentes do 25 de
Novembro de 1975, um dos artífices do Acordo de Bicesse, deixa uma vez mais
cair a sua máscara enquanto agente do quadro de perspectivas geoestratégicas do
choque e terapia neoliberal: ainda que com escalas distintas e variáveis
espaciais e temporais a condizer, o início do choque no Iraque, como em Angola,
teve até alguns dos mesmos personagens.
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