O
que os militares portugueses fazem na República Centro-Africana, em
terminologia oficial, é participar numa missão da ONU e da União Europeia (e da
NATO, subentende-se sem esforço) para normalizar a situação institucional no
país, dilacerado por sangrentas e induzidas refregas.
José
Goulão – AbrilAbril, opinião
O primeiro-ministro
visitou o corpo expedicionário português presente na República Centro Africana,
aliás um episódio histórico bizarro no país que associou a sua democratização a
proclamações como «nem mais um soldado para África» ou «nem mais um soldado
para as colónias» (o que também é válido para neocolónias dos outros).
Poderia
citar mil e uma obrigações da agenda do Dr. António Costa capazes de se
sobrepor à necessidade de levar solidariedade a uma missão militar considerada
«humanitária» e que se diz ao serviço da ONU e da União Europeia; a qual, em
derradeira análise, serve interesses estratégicos e neocoloniais de alguns
aliados e de meia dúzia de impérios económicos tirando proveitos de áreas
sangrentas como são a exploração de ouro e diamantes. E que nada têm a ver com
os interesses dos portugueses.
Como
gesto político é dispensável. Até parece que em terra portuguesa tudo corre
sobre rodas, como se as garras de uma oposição revanchista não estivessem
esgatanhando em tudo, invocando aliás a tutela de uma das entidades a quem o
chefe do governo foi levar solidariedade até Bangui: a União Europeia, essa
organização assanhada contra quase tudo o que o executivo faz em Portugal e
que, por sinal, é um dos grandes receptadores dos diamantes centro-africanos –
legais ou clandestinos.
O
que os militares portugueses fazem na República Centro-Africana, em
terminologia oficial, é participar numa missão da ONU e da União Europeia (e da
NATO, subentende-se sem esforço) para normalizar a situação institucional no
país, dilacerado por sangrentas e induzidas refregas entre milícias muçulmanas
e cristãs associadas à exploração – por terceiros – das riquezas mineiras do
território.
A
cavalo da restauração institucional garante-se, como é óbvio, a normalização da
rentável actividade de exploração e exportação de diamantes, a cargo de
poderosas transnacionais. Informam múltiplos estudos e investigações
internacionais que os principais destinos dos diamantes da República
Centro-Africana, tanto os exportados legalmente como clandestinamente, são os
Emirados Árabes Unidos, a União Europeia e Israel.
«Esta
guerra só é "humanitária" para efeitos de propaganda.»
Concretiza-se
assim uma lucrativa operação de centenas de milhões de euros – misto de
comércio e tráfico. Por exemplo, verifica-se que os diamantes declarados na
Bélgica como importados da República Centro-Africana, com entrada principal por
Antuérpia, chegam a atingir o triplo do valor da exploração oficial de
diamantes divulgada neste país pertencente ao top ten da actividade. A
mascarada envolve também, como não é difícil apurar, as rotas clandestinas com
origens igualmente na República Democrática do Congo, Serra Leoa e outros
territórios.
Os
militares portugueses estão em Bangui a criar condições para sanear este
escândalo económico e humanitário? Não sejamos ingénuos: ele vem de muito antes
das atrocidades entre as milícias seleka e balaka e prosseguirá, em paz,
sossego e, provavelmente, com maior volume quando normalizadas as instituições
do país que já foi do «imperador» Bokassa e seus diamantes, ofertados, quando
convinha, a presidentes europeus neocoloniais.
Quanto
à presença da ONU no país, para não agravar o tão degradado prestígio da
organização talvez seja misericordioso poupar os leitores a pormenores. Desde a
conhecida e descarada exploração de trabalho infantil, sob os seus olhos, na
mineração de ouro e diamantes, até múltiplos casos de crimes sexuais, há de
tudo um pouco na crónica da indigna presença no terreno de membros enviados
pelas Nações Unidas.
Admitamos
que este cenário não é a razão de ser do contacto entre o primeiro-ministro e
os militares portugueses. Contudo, ele existe e está indelevelmente associado à
missão atribuída ao corpo expedicionário português. Pelo que o autêntico gesto
de solidariedade do Dr. António Costa para com os militares expatriados e o
prestígio das Forças Armadas Portuguesas seria poupá-los a uma missão que tem
objectivos não claramente explicitados, e que extravasam o real papel que deve
estar reservado aos destacamentos operacionais em territórios além-fronteiras.
A
tropa portuguesa não está ao serviço de interesses dos outros, com a agravante
de estes serem mal explicados ou explicáveis segundo o conceito do business
as usual, ou o negócio do costume.
Esta
guerra só é «humanitária» para efeitos de propaganda. E as Forças Armadas devem
estar ao serviço de interesses que sejam efectivamente transparentes e dos
portugueses, o que está longe de ser o caso.
Um
mais cuidadoso e independente alinhamento das prioridades de agenda não faria
mal ao primeiro-ministro.
Na
foto: O primeiro-ministro, António Costa, durante a visita ao campo onde estão
instalados os militares portugueses, em Bangui, República Centro-Africana, 13
de Fevereiro de 2017Créditos/ Agência Lusa
Sem comentários:
Enviar um comentário