terça-feira, 14 de março de 2017

Angola. CARTA-CONVITE


Excelentíssimos Senhores. Queiram aceitar os meus melhores cumprimentos. No âmbito das competências que me são atribuídas pelo estatuto de cidadã deste país, onde tenho residência fiscal, venho por este meio convidar os responsáveis do sector energético a passarem uma noite no povoado.

Luísa Rogério – Rede Angola, opinião

Excelentíssimos Senhores. Queiram aceitar os meus melhores cumprimentos. No âmbito das competências que me são atribuídas pelo estatuto de cidadã deste país, onde tenho residência fiscal, venho por este meio convidar os responsáveis do sector energético a passarem uma noite no povoado. Face aos objectivos da convivência proposta a estadia pode prolongar-se até ao anoitecer do dia seguinte. Desse modo, as entidades do supracitado sector terão a soberana oportunidade de constatar “in loco” quão desestruturante pode ser uma noite. Travar inglórios combates contra mosquitos ao som do estrondoso ruído de poluentes geradores conforma só um detalhe da jornada plena de sensações.

Embora não se enquadre no objectivo primordial do convite, as entidades terão a possibilidade de ver incontáveis viveiros do minúsculo ser que contribui sobremaneira para elevar os índices de mortalidade em África. Involuntariamente os habitantes do povoado têm contribuído para a reprodução em grande escala de mosquitos, esses abomináveis insectos responsáveis por milhões de vidas perdidas. Devido à escassez de água o precioso líquido é armazenado em todos os recipientes e mais alguns nos santos dias em que jorra nas nossas torneiras. Fora disso o abastecimento regular tem sido garantido pelos oportunos kupapatas que também chamamos “Avô Chegou”. Portanto, somos movidos pela elementar necessidade de sobrevivência quando descuramos o cumprimento de algumas recomendações das autoridades com vista a diminuir a proliferação de mosquitos.

De volta ao principal assunto que motivou esta carta-convite, encorajo as chefias a providenciarem repelentes para afugentar os execráveis voadores. Por mais que apele a vossa solidariedade jamais me perdoaria se contraíssem alguma doença comum em comunidades pobres. Infelizmente não garanto nenhum paliativo contra o calor. A única saída é a pessoa manter-se quieta. E derreter tranquilamente. Apesar de cansativo, recorrer ao velho abano pode ser um exercício salutar para tonificar os braços. Menos mal. Como todo o episódio negativo carrega a componente exótica, recomendo não se esquecerem de trazer smartphones, tablets e demais dispositivos apropriados para registarem com rigor os tormentos de uma noite sem energia eléctrica.

Estou convicta de que se vão sensibilizar quando ouvirem os nossos filhos a pedirem para abanarmos mais fortemente contra o calor. O inocente sorriso que acompanha a bem disposta saudação matinal ameniza o sentimento de derrota na luta contra os mosquitos. Chega a hora em que, vencida pela exaustão ofereço também o meu sangue aos vampiros em versão quase microscópica, rogando aos céus para não terem plantado a praga da malária. Queiram tranquilizar-se entidades, vou evitar conversas do género levar crianças ao hospital porque esse não é o vosso pelouro e eu própria perdi arcabouço mental para aumentar o grau de depressão.

Caríssimos responsáveis, caso pretendam apresentar-se bem ataviados depois da jornada devem trazer roupas bem engomadas. O famoso ferro à gaz, como convencionamos designar o processo de aquecer o ferro no fogão para alisar o vestuário, tanto quanto o engenhoso método da panela passadeira comporta custos adicionais. O gaz também está caro. Além disso, quase ninguém se importa quando vê gente com vestes meio amarrotadas. Aproveito a ocasião para informar que comprei pilhas extras para lerem, sob as luzes das lanternas compradas na cantina do amigo Mamadú, os projectos que prometem a resolução quase total dos problemas do sector até 2017. Por sinal, este ano eleitoral. Preferi não ligar ao recorte de Jornal que prometia melhorias substanciais em 2012. A matéria foi publicada na véspera de ano eleitoral.

Sem prejuízo do clima de hospitalidade exorto os camaradas responsáveis do sector a jantarem antes da visita ou a trazerem os respectivos farnéis porque já não temos frescos em casa. Os produtos armazenados na arca que serviriam para cobrir parcialmente as necessidades do mês foram para o lixo. Num determinado dia comeu-se à grande e à francesa cá em casa. Faltou pouco para ultrapassarmos o limite entre a tentativa de evitar o desperdício e a congestão. Esforço em vão. O estomago humano é desprovido da capacidade de conservar alimentos. E o calor acelerou a rápida deterioração de bens tão duramente alcançados.

Inumeráveis aspectos caberiam nesta longa exposição. Poupo-vos de detalhes cansativos porque vão constatar a realidade no terreno. Deveria simplificar a questão resumindo-a em dois ou três parágrafos. Certamente vão notar a linguagem recheada de lugares comuns. Espero que compreendam. Noites mal dormidas provocam confusão mental, cansaço físico e desgaste psicológico.

Com consumo baixo ou moderado o valor da factura aumenta. Sou sensível aos alegados esforços com vista a resolução de problemas básicos da população. Ainda que empregue dinheiro a comprar um eventual companheiro do projecto de carcaça que enfeita o meu quintal, não abdico dos meus direitos. Pago as minhas contas. Tenho legitimidade para buscar o equilíbrio entre direitos e deveres. Não me venham dizer que seria mais prático deixar de lamuriar, comprar um novo gerador e ser boa patriota. Geradores custam dinheiro. Precisam de manutenção. Alimentam-se de combustível e não de energia solar. O uso continuado provoca danos irreversíveis a saúde humana. Por hoje, dia tórrido de Março fico por aqui.

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