terça-feira, 14 de março de 2017

Angola. COMBATER A POBREZA É UM DESAFIO SEM LIMITES!


NA ASPAR, PARA QUE NÃO HAJA MAIS VOLÁTIL ABANDONO

Martinho Júnior, Luanda  

Debaixo dum acolhedor e viçoso abacateiro, dum perdido quintal do Zango, na protectora penumbra que abriga da ardência do sol tropical, entre os odores de apetitosos frutos e as tenras e sussurrantes folhas tocadas pela brisa, morreu Jacob em sua última alvorada…

Sua família contou-me que se havia levantado cedo, como todos os dias, tomado um banho retemperador e ido para o seu local preferido para ali ver o sol nascer…

O carinho ferido de espanto e pranto de sua família, colocou ali mesmo, nessa difusa sombra, uma singela mesa com sua fotografia, para que solenes os vivos se inclinassem face ao seu meio ignorado regresso ao pó.

Nunca tinha ido a esse lugar, apesar de tantas vezes enquanto Secretário-Geral da ASPAR o ter adivinhado, pelas notícias que vão chegando de cada um dos finados membros duma comunidade que se despedem sem maior carinho, ou reconhecimento, senão o de suas próprias famílias e amigos mais chegados.

Aquele quadro transporta-me para muitos outros quadros similares, Angola adentro…

… Chamaram-me e disseram-me: mais uma pequena vela, mais uma pequena biblioteca, que se apaga num volátil abandono, um ser cuja vida patriótica foi mais uma contribuição em benefício do povo angolano!...

… A liberdade haveria de ser repartida entre iguais, mas Jacob não teve apoio, nem pensão, nem a devida solidariedade, nem o honesto reconhecimento que os justos devem honrar com seus deveres e obras perante os iguais e a história!

Jacob foi uma pequena gota que integrou o caudal que nasceu do grito dos escravos libertos (é preciso lembrar sempre a revolução libertária dos escravos no Haiti, em princípios do século XIX, mesmo que em Angola os descendentes dos antigos escravos e os descendentes dos “indígenas”nunca tenham ouvido sequer falar do Haiti)…

… Uma pequena gota alvoraçada e plasmada entre tantas outras gotas num leito de turbulentas corredeiras, com a coerência própria que dá sentido gravitacional e oceânico às águas tornadas torrentes impetuosas e às bandeiras erguidas da fluência de tão árduos desafios!

Experimentando o abandono que marcou a carne e a alma bruscamente despovoada, Jacob nem se quis juntar a outras gotas desperdiçadas desde a década de 90 do século passado, muitas das quais se foram evaporando sem remissão…

Deixou-se pairar abandonado no ar, por que afinal o abrigo do abacateiro lhe bastava: era com ele que Jacob dialogava, como os camponeses dialogam com a terra e com os embriões dilectos nascidos de suas mãos.

Por isso sua apagada trajectória (e seu sulco humano) deixou de ser conhecida e ainda menos reconhecida e no entanto, aqueles que também nele se reviam, bateram-me à porta e com sua voz embargada pelo inesperado da hora da grande angústia, apontaram-me o abacateiro do seu trânsito final, ali onde morreu um camarada!

Essa é a estória, dentro da história, de uma entre muitas outras vidas iguais, duma mortalha que foi sendo tecida, nas duas últimas décadas, no silêncio e na solidão!

Cada gota dessas, mesmo evaporada, reforça a convicção de quão premente é alimentar a lógica com sentido de vida! 

*Fotos do camarada Jacob Daniel Francisco ao abrigo ainda dum perdido abacateiro no Zango…

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