Novo livro narra rotina macabra
dos operadores de drones, homens suaves que eliminam os “inimigos” dos EUA.
Mais de 6.300 já foram assassinados — centenas de crianças. Mas, não sendo
brancos, serão humanos?
Nuno Ramos de Almeida* | Outras Palavras
Vamos relatar isto com um
ambiente feliz, misturado com torradas, de uma família dos EUA, como naqueles
filmes com uma estética dos anos 50, em que o marido está impecavelmente
vestido e às crianças é servida, pela solícita e loura mulher da família, a
mais importante refeição do dia. Vamos esclarecer um pequeno ponto prévio:
aqui, quando falamos em europeus, não incluímos as pessoas de várias cores que
vivem do Atlântico aos Urais, mas, regra geral, falamos dos brancos, vivam na
Áustria ou na Austrália, nos EUA ou até em Israel, porque, aqui, europeus são
os descendentes da cultura e dos povos que habitaram o Velho Continente desde
meados da Idade Média, excluindo os árabes que andaram pela península
Ibérica.Mas voltemos ao café da manhã: ovos, café, suco de laranja. Finda a feliz
refeição no lar, seguem-se as despedidas consagradas pelo sagrado matrimônio e
pela paternidade; a esposa vai levar as crianças à escola de carro; e o marido
segue responsavelmente, de carro, para o trabalho.Passa por uma cancela
eletrônica, entra num edifício em que se identifica com um cartão e uma espécie
de relógio de ponto com impressões digitais. Muda de roupa no vestiário das
instalações, guarda o terno e a gravata no respectivo armário. Dirige-se, agora
com sua farda militar, para o turno de trabalho, numa espécie de contêiner
junto ao edifício principal. É um orgulhoso membro da força aérea dos EUA, um
piloto com centenas de missões, feitas em turnos de meia dúzia de horas, e
milhares de “inimigos” dos EUA abatidos. Nunca voou, ele próprio, para fora do
seu país, mas as suas missões são executadas em todo o globo terrestre.A
conversa que se segue é oficial, está gravada e registada pelos próprios
militares para uma avaliação contínua da sua performance. O conteúdo faz parte
da introdução do livro Theorie
du drone, do filósofo francês Grégoire Chamayou. É uma descrição de vários
operadores de um desses aparelhos. Por uma questão de economia de texto – dura
um capítulo inteiro –, vou resumir o que é dito, mas sem alterar um substantivo
sequer de seu conteúdo. Era de noite no Afeganistão e, antes que o sol se
levantasse para o dia começar, os drones tinham observado um comportamento
“anormal” no terreno. A noite acabava e um grupo de pessoas preparava-se para
viajar num conjunto de veículos. “Dá pra fazer um zoom para se ver melhor?”,
pedia o oficial. “São pelo menos quatro que estão entrando na picape”, diz um
deles; “repare que um deles, que está mais ao norte, parece pressionar alguma
coisa contra o peito”, acrescenta outro. “É o que ultimamente eles andam a fazer:
metem a merda das armas dentro da roupa, para que não possamos fazer uma
identificação positiva.” O piloto e o operador vigiam a cena num monitor, estão
vestidos com uma farda militar cáqui, têm sobre os ombros o símbolo da sua
unidade, usam fones, estão sentados lado a lado diante de painéis onde se
observam várias luzes de aparelhos eletrônicos, mas não estão exatamente no
cockpit de um avião. As imagens captadas no Afeganistão pelo drone armado (um
aparelho voador não tripulado) são enviadas via satélite para a base de Creech,
não muito distante de Indian Springs, no Estado norte-americano de Nevada.Esta
base é descrita, com orgulho, pelos próprios militares, como “a casa dos
caçadores”. O trabalho é normalmente entediante, noites inteiras de vigilância
para alguns momentos de ação, entre uma barra de chocolate e outra; até
que serão rendidos na manhã seguinte por um outro turno de homens.Encerrado o
expediente, o piloto e o operador voltarão de carro para as suas famílias e
casas nos arredores de Las Vegas, depois de uma viagem de 45 minutos. Neste dia
e neste momento registrados no livro de Chamayou, têm de tomar uma decisão. Os
passageiros dos três veículos, que partiram há poucos minutos da pequena aldeia
da província afegã de Daikundi, não sabem que estão sob observação aérea. Para
a decisão da sua eliminação estarão presentes, não só o piloto e o operador,
mas um coordenador de missão, um “observador de segurança”, uma equipe de
analistas de vídeo e “um comandante das forças terrestres”, que dará a luz
verde ao morticínio. Pelo caminho vão comentando: “Não consigo identificar
armas, mas devem estar escondidas.” “O caminhão vai dar um excelente alvo, é um
Chevy Suburban”, diz descontraidamente o observador, com o assentimento do
piloto. O coordenador da operação repara que pode haver “pelo menos uma
criança, perto da viatura”. “Merda”, exclama o operador, “não me pareceu ver
alguma coisa assim tão pequena, não será um adolescente?” “Temos de verificar”,
anota com enfado o coordenador. “Estão a rezar. Parecem adolescentes”, nota um.
“Adolescentes? Isso já se pode eliminar.”Passadas umas dezenas de minutos,
monitorados e alimentados por dados do drone, tratados por um algoritmo que
permite calcular percentagens de cenários, baseadas num conjunto de estereótipos
que aponta decisões, é dada, depois da oração das vítimas, ordem de ataque.
Nesta operação, porque está presente um único drone, este vai ser auxiliado por
dois helicópteros de ataque. Quatro horas depois do início da observação e
minutos depois da destruição dos três veículos, faz-se o balanço. Operador:
“Quem são estes? Eles estavam no veículo do meio”. O coordenador: “São mulheres
e crianças”. O observador: “Parece uma criança, aquele que agita uma bandeira”.
O operador: “Neste momento não me sinto à vontade para disparar sobre ele.”
“Não”, concorda o coordenador.Para minorar estes pequenos enganos, as
estatísticas militares dos EUA passaram a considerar combatentes de guerra toda
pessoa do sexo masculino, esteja ou não armada, “reduzindo” assim em muito as
baixas colaterais.No entanto, de acordo com The Intercept, as estimativas
oficiais em 2017 apontam para cerca de 3 mil mortes através de ataques
conduzidos por aviões não tripulados (drones) em quatro países (Afeganistão,
Iêmen, Paquistão e Somália). O Centro de Direitos Humanos da Columbia Law
School (EUA) e o Centro de Estudos Estratégicos de Saná (Iêmen) denunciam a
falta de transparência no que toca à divulgação do número de vítimas. As
estimativas oficiais reconhecem apenas 2.935 vítimas mortais, enquanto The
Bureau of Investigative Journalism (TBIJ), uma organização de jornalistas
investigativos sem fins lucrativos, indica entre 6.382 e 9.240 mortos por
ataques com drones desde 2004.O número de civis assassinados é estimado pelo
TBIJ entre 739 e 1.407, a que se somam entre 240 e 308 crianças. De acordo
com The Intercept, os dados podem esconder um número ainda maior de
vítimas civis, já que os EUA têm conduzido ataques com drones sobre “homens em
idade militar” nas zonas onde operam – inclusivamente durante “casamentos,
funerais e outras ocasiões comunitárias”.O mais interessante é que, embora haja
organismos que aprovam e se responsabilizam por estas operações, muitas delas
em países com os quais os EUA não estão oficialmente em guerra, nem os
deputados norte-americanos foram chamados a pronunciar-se sobre estas agressões.
Grande parte das decisões são tomadas por dados recolhidos pelos próprios
drones e avaliados a partir de conclusões que os computadores dessas máquinas
voadoras considerem “padrões mais prováveis”. Há gente assassinada devido ao
“pensamento” e conclusões dos computadores de drones, que assassinam pessoas
que, pelo visto, os europeus e os seus descendentes julgam não ser gente que
pense o suficiente para merecer viver. Aliás, tecnicamente, já é possível
programar essas máquinas para executarem diretamente pessoas, sem intervenção e
decisão humana, apenas por uma tomada de decisão baseada na existência de
determinados padrões que configurem a existência de uma “atividade
terrorista”.Do ponto de vista da escala de valores, teríamos em primeiro lugar
os “europeus” capazes de pensar; em segundo lugar, as máquinas, criadas por
eles, capazes de assumir a liquidação de “sub-humanos”; e, em terceiro lugar,
todos os bípedes não brancos e não pertencentes às monarquias do Golfo. Nas
cidades da Europa e dos EUA, a lógica repete-se: ser cidadão depende muito da
cor da pele e do bairro onde se habita.Para isto acontecer com os drones, e
como acontece no dia-a-dia em países como Israel, é preciso uma filosofia sobre
o outro que o torne desumano. Só isso pode justificar que sejam presos menores
e condenados a penas de dezenas de anos de cadeia. Isto só é possível porque há
uma ideologia, não publicamente assumida, de que há humanos e que há outros
bípedes que podem ser agredidos, detidos, torturados e mortos.O caso da prisão
da adolescente palestina Ahed Tamimi é um símbolo dessa ideia de uma raça
superior que tem o direito de matar tudo o resto. A jovem de 16 anos tentou
agredir soldados israelenses minutos depois de o seu primo de 15 anos ter
recebido um tiro no rosto, à queima-roupa, de uma bala de borracha, ficando à
beira da morte. Foi detida juntamente com os seus familiares e arrisca-se,
segundo a imprensa local, uma pena de prisão que ultrapassa os dez anos. Não
consta que o militar israelense que disparou contra o primo tenha qualquer
problema em continuar a fazê-lo. A legislação de Israel prevê a prisão de
crianças a partir dos 12 anos. O caso que acontece todos os dias na Palestina
ocupada só teve um maior destaque porque as redes sociais viralizaram o
sucedido e a jovem, que já se tinha oposto, com 12 anos, à derrubada da sua
casa, é loura e tem os olhos azuis, como uma europeia.
A pergunta retirada de Hamid
Dabashi “Os Não Europeus Pensam?” serve para nos esclarecer duas coisas: a base
do massacre dos pobres e dos povos explorados deste mundo começa numa operação
ideológica em que lhes é retirada a sua humanidade. E, bem vistas as coisas, é
mais provável que os carrascos ditos europeus não pensem do que as suas vítimas
não sejam humanas. O sofrimento é humano, a violência dos carrascos é inumana.
* Nuno Ramos de Almeida é
jornalista português, editor-executivo do Jornal I (www.ionline.pt).
Sem comentários:
Enviar um comentário