Manuel Carvalho da Silva | Jornal
de Notícias | opinião
Perante as medidas de legislação
laboral apresentadas pelo Governo é quase irresistível recorrer à metáfora do
copo de água. Vários atores políticos e sociais retrógrados já gritavam que o
copo estava a transbordar, mesmo antes de o Governo ter vertido alguma coisa
para dentro dele. Há setores da Direita conservadora e patrões que consideram
uma afronta pôr-se em causa as receitas que a troika e o Governo PSD/CDS cá
deixaram no domínio da legislação laboral. A oferta foi choruda e querem
consolidá-la para o futuro. Conhecedores profundos de que a estrutura e o
funcionamento da Comissão Permanente de Concertação Social são desfavoráveis
aos trabalhadores, tudo farão para tentar que esse órgão "vete"
qualquer reposição de direitos ou introdução de novas regulações que travem a
precariedade e a proliferação de baixos salários.
As pressões já começaram. Por
agora, as atitudes de indignação traduzem-se na ameaça de não participarem no
debate. Rapidamente passarão à exigência de lhes serem dadas chorudas
compensações para estarem no debate. Para eles, qualquer reequilíbrio ou
melhoria da legislação laboral deve dar-lhes o direito de extorquir um preço
aos trabalhadores e aos contribuintes.
Para os trabalhadores, para os
sindicatos e para a maioria dos atores económicos, sociais e políticos, pode
ser uma tentação perigosa reduzir a questão aos termos do copo meio cheio ou
meio vazio. A favor da tese do copo meio cheio está o que parece ser um
razoável diagnóstico sobre a precariedade e a "segmentação", estão
intenções de colocar a nu procedimentos marginais em que se formulam certos
vínculos laborais, e o propósito de eliminar (será?) os bancos de horas
individuais. Mas a dar dimensão à hipótese do copo meio vazio está a maior
parte do resto, que é muito: desde logo, uma abordagem muito insuficiente e
duvidosa (pelo que se conhece até agora) da importante questão da caducidade
das convenções coletivas; e a ausência de respostas imprescindíveis no que se
refere ao respeito pelo princípio da existência de normas mínimas. Em limite,
poderiam identificar-se as exceções e o controlo rigoroso sobre elas. Na
legislação da OIT, em normas da União Europeia (agora propositadamente
esquecidas), este princípio é considerado fundamental, não apenas para a
regulamentação do trabalho, mas também como elemento estruturante do Estado
social de direito democrático.
As medidas são limitadas. Acresce
que uma parte do que está no copo tanto pode ser uma coisa como outra,
dependendo da especificação das medidas. Tomemos, por exemplo, a questão da
taxa imposta à hiper-rotatividade dos contratos. É um preço, ou uma multa? É um
preço que as empresas podem pagar e que depois de pago torna legítima a
hiper-rotatividade? Ou é uma multa que pune, não legítima e obrigará a corrigir
o comportamento? Questões semelhantes que escondem ausência efetiva de
tratamento dos problemas existem noutros domínios da política.
Assim, se a hiper-rotatividade
continuar a ser encarada com naturalidade, se a taxa criada for irrisória e se
a inspeção do trabalho continuar a não dispor de meios suficientes, tudo indica
que a medida não venha a ter qualquer efeito e até possa atuar perversamente em
sentido contrário ao desejado. Mas se o caso for outro - censura social do
abuso aos contratos a prazo, taxa dolorosa e mais inspeção - então a medida
poderá contribuir para mitigar o problema. O mesmo princípio se aplica noutras
matérias. É tempo de se lembrar, por exemplo, como em Portugal se combateu com
sucesso o trabalho infantil. Houve necessidade de forte penalização social e
duro combate no terreno. E valeu a pena.
O facto de o diabo estar nos
detalhes remete para a necessidade de se trazer o debate sobre estas propostas
para fora do recinto da Concertação Social. Na Assembleia da República exige-se
qualidade e rigor. Os sindicatos têm de ser ofensivos, as empresas e as
organizações patronais têm o direito e o dever de expor os seus argumentos, a
Comunicação Social deve dar espaço qualificado e a academia não deve ficar
ausente. Isso será bem mais importante do que ficar a discutir-se se o copo
está meio cheio ou meio vazio.
*Investigador e professor
universitário
Sem comentários:
Enviar um comentário