A integração de uma guerra contra
o Irão no processo cada vez mais evidente de criação de «um novo Médio
Oriente» implica uma reactualização do tipo de intervenção imperial na
Síria.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Aos cabos de guerra não se pedem
metáforas nem se exige diplomacia; falam pouco e, quando o fazem, disparam
palavras cruas e directas com alvos escolhidos e objectivos afinados consoante
a estratégia mais actual, os quais ultrapassam, em muito, a necessidade
canónica de manter despertos os instintos exterminadores das hostes sob o seu
comando.
Por isso, quando figuras como o
almirante John M. Richardson, chefe de operações navais do Pentágono, e o
general norte-americano Curtis Scaparrotti, comandante das forças aliadas na
Europa, dizem de sua justiça é aconselhável ouvi-los, obrigatório entendê-los.
E estampar as suas sentenças como legendas dos movimentos militares que vierem
a desencadear.
Para acolher e divulgar as mais recentes mensagens do almirante Richardson foi
escolhida a BBC, um pilar da mundialização anglo-saxónica, fenómeno mais
simploriamente conhecido como «globalização». Tecnicamente qualificada
como «entrevista», a performance do chefe de operações navais do Pentágono
não passou de um discurso que, para ser mais eficaz, foi formatado com a ajuda
de um profissional da estação para introduzir as variações temáticas e
retirar-lhe os vícios monocórdicos.
De uma penada, o almirante John
M. Richardson revelou que os Estados Unidos renovaram a estratégia militar e,
em consequência, adoptaram medidas que elevam os patamares de disponibilidade e
de presença territorial dos seus corpos expedicionários de âmbito mundial.
«A nossa estratégia de defesa
nacional», anunciou o chefe de operações navais do Pentágono, «torna claro que
estamos de regresso a uma era de competição entre grandes potências, na qual o
ambiente de segurança se torna cada vez mais desafiador e complexo».
Existe pois, segundo o almirante
Richardson, «uma reorientação das forças armadas norte-americanas perante
um mundo de renovada competição entre grandes potências e distante das
campanhas de contra-insurgência que têm sido desencadeadas nas últimas décadas».
Em primeira leitura deduz-se que
o Pentágono retoma um dispositivo de tipo «guerra fria», tendencialmente
mais «quente» do que esta, tendo em conta a proliferação de conflitos
activos, e deixa para segundo plano o sistema de agressões isoladas – embora
estrategicamente convergentes – provavelmente por não ter conseguido alcançar
uma única vitória nessas guerras que deveriam ter sido resolvidas em meia dúzia
de dias, segundo as profecias oficiais.
A maior prioridade, definiu o
almirante, «é combater a Rússia». Não sendo novidade, tendo em conta as
movimentações no terreno e os objectivos subjacentes a numerosas operações
militares e políticas que se sucedem em cadeia, é a primeira vez que um alto
responsável norte-americano nomeia a Federação Russa como o inimigo num
contexto militar de nova guerra fria.
Em função da prioridade definida,
prosseguiu o almirante Richardson, «estamos a reactivar a Segunda Esquadra para
responder a esses desafios, principalmente no Atlântico Norte». Teoricamente
desactivada em 2011, a ressuscitada esquadra terá jurisdição sobre navios,
meios aéreos e forças terrestres numa área entre o Pólo Norte e o Mar das
Caraíbas, entre a costa leste dos Estados Unidos e a zona central do Atlântico,
uma área cuja dimensão o chefe militar avaliou em 17,5 milhões de quilómetros
quadrados.
Conjuguemos agora os anúncios do
chefe de operações navais do Pentágono com as considerações político-militares
tecidas pelo general norte-americano Curtis Scaparrotti, o qual, como
comandante das forças aliadas em território europeu é, de facto, o chefe
operacional do mega-exército resultante da unificação de quase todas as tropas
da Europa e, por inerência, da União Europeia.
Nessa qualidade, e com a maior
naturalidade colonial, Scaparrotti dissertou perante o Congresso dos Estados
Unidos sobre as contingências impondo uma renovação da estratégia militar de
Washington e aliados, designadamente na Europa.
«A Rússia lançou uma campanha de
desestabilização para alterar a ordem internacional, confundir a NATO e minar a
liderança dos Estados Unidos no mundo inteiro», proclamou.
Como exemplos deste inadmissível
desafio de Moscovo a um status quo segundo o qual o mundo é um território
norte-americano, o general citou a «anexação ilegal da Crimeia» e
a «desestabilização na Ucrânia Oriental» – por sinal situações que
decorrem do golpe fascista dado em Kiev sob direcção operacional de Washington
e o patrocínio político da União Europeia.
O general Scaparrotti explicou
ainda aos congressistas que a reorientação da estratégia militar deve ser
acompanhada por um «combate à desinformação russa», da responsabilidade dos
Estados Unidos, em parceria com a NATO, de maneira a assegurar «uma informação
verídica e transparente».
Da qual podem ser exemplos –
ainda que não citados pelo cabo de guerra – os casos em torno da suposta
tentativa de assassínio do espião Skripal e filha, além dos episódios com armas
químicas na Síria, tanto as que não foram usadas em Duma como as que não
existiam em alvos atingidos pelos mísseis da tripla aliança Trump-Macron-May,
no passado dia 14 de Abril.
Acontecimentos relatados com uma
veracidade e uma transparência tão inquestionáveis como «a liderança dos
Estados Unidos no mundo inteiro».
Que sucede, entretanto, enquanto ecoam as palavras do almirante Richardson e do general Scaparrotti, por definição homens de poucas falas e muito mais acção?
Iniciou-se a ressurreição da
Segunda Esquadra norte-americana, gigantesco corpo da NATO com quartel-general
em Norfolk, na Virgínia. Quando foi teoricamente extinta, em 2011, a monumental
esquadra era constituída por 120 navios de guerra, 4500 aviões e 90 mil
efectivos.
Enquanto isso, nos últimos dias
de Abril os ministros dos Negócios Estrangeiros da NATO, entre eles o inefável
dr. Azeredo Lopes, declararam-se de acordo em agregar mais quatro países à
pacífica aliança: Bósnia-Herzegovina, FYROM (Macedónia), Geórgia e a Ucrânia,
onde os grupos de assalto nazis pontificam à cabeça das organizações militares
nacionais.
Ao Mediterrâneo, com as miras
focadas na Síria mas para «combater a influência russa», chegou o
poderosíssimo grupo de combate imperial comandado pelo super porta-aviões Harry
S. Truman, nave com mais de 300 metros de comprimento movida por dois reactores
nucleares e que pode lançar vagas sucessivas de mais de uma centena de caças e
helicópteros militares.
Acompanham-no uma imponente frota
pronta a disparar mais de mil mísseis de cruzeiro: o cruzador Normandy, os
contratorpedeiros Arleigh, Burke, Bulkeley, Forrest Sherman, Farragut, Jason
Dunham, The Sullivans e a fragata alemã Hessen.
O grupo junta-se a quatro
contratorpedeiros e a numerosos submarinos de países da NATO já presentes na
região. Sobre os objectivos reais, que não os proclamados, desta presença
recorda-se que, desde 1991, as forças armadas norte-americanas dispararam 2250
mísseis de cruzeiro durante guerras em vários continentes provocadas pelos
Estados Unidos e com envolvimento da NATO: Jugoslávia, Bósnia Herzegovina,
Sudão, Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria – incluindo já os 103 lançados em 14
de Abril último.
Como sabem os que estão
familiarizados com o mantra propagandístico da Aliança Atlântica, a tal
informação «verídica e transparente» que tanto motiva senhores da guerra como o
almirante Richardson e o general Scaparrotti, os grupos de combate dispondo de
incalculável potencial de extermínio movem-se pelo mundo com um arreigado
intuito «defensivo» e um tenaz apego à «segurança nacional» não se
sabe bem de quem; porém, ameaçada cobardemente pelas populações civis de
cidades como Alepo, Damasco, Homs, Bagdade, Mossul, Kirkuk, Tripoli, Beirute,
Cabul, Falluja, Hebron, Gaza, Belém e tantas outras de uma lista infindável de
antros incapazes de compreender a liberdade, a civilização, a democracia e os
direitos humanos levados pacificamente até eles por refinados e cirúrgicos
engenhos de morte.
Para que a segurança destas
imensas forças não seja abalada enquanto cumprem as suas missões há que
relembrar a situação de apronto em que se encontram as forças navais
norte-americanas para a Europa e África, designadamente a Sexta Esquadra, que
têm quartéis-generais nas regiões italianas de Nápoles e Gaeta; e a Quinta
Esquadra, pronta para o que der e vier a partir da sua base no Bahrein.
E porque o mundo é um só, graças
à «ordem internacional» – e também imperial – estabelecida sob «a
liderança dos Estados Unidos», renasceu na era de Obama a afamada Quarta
Esquadra, velho polícia da América Latina com longa e sangrenta história para
garantir a «segurança nacional» de sucessivas ditaduras latino-americanas
– restauradas agora em formato «benigno» graças aos golpes no
Paraguai, regime que obedece a Trump instalando a sua embaixada em Jerusalém, e
no Brasil de Temer.
As reactualizações estratégicas
do Pentágono anunciadas por cabos de guerra como Richardson e Scaparrotti, e as
significativas movimentações bélicas que lhes sucedem desvendam um novo/velho
alvo de guerra que cola ainda mais a Administração Trump ao fascismo sionista
de Netanyahu, mesmo que o afaste ligeiramente de aliados europeus, um
distanciamento que nunca passa, porém, de simples verbalizações sem quaisquer
consequências quando chega a hora de disparar os mísseis.
A revogação, por Donald Trump, do
acordo com o Irão e a imediata gratidão que o primeiro-ministro de Israel
tornou pública revelam que Washington e Telavive atingiram o ponto de sintonia
absoluta no projecto de guerra contra Teerão.
Fica escancarado o caminho para a
tentativa de consumação de um outro grande objectivo dos fascismos sionista e
saudita e do complexo militar e industrial norte-americano: reduzir a pó a
influência do Irão no Médio Oriente, de modo a concretizar o novo mapa regional
– mesmo que a versão final deste seja ignorada até pelos
próprios «cartógrafos.
A integração de uma guerra contra
o Irão no processo cada vez mais evidente de criação de «um novo Médio
Oriente» implica uma reactualização do tipo de intervenção imperial na
Síria, uma vez que o conflito conduzido por Washington, Londres e
Paris através de interpostos grupos terroristas não fez o pleno dos objectivos
prioritários: desmantelar o país e derrubar o regime em Damasco.
Ao contrário da informação
«verídica e transparente» difundida por ocasião dos bombardeamentos
terroristas de 14 de Abril, o palácio presidencial foi um dos alvos dessa
operação. As forças militares sírias tinham concentrado, porém, muitas das suas
capacidades antimíssil na defesa das estruturas do regime, pelo que abateram
todos os engenhos com esses destinos.
O esforço, porém, obrigou a
desproteger outras instalações e, por isso, os agressores conseguiram destruir
o centro de investigação de Barzeh, onde era fabricada a maior parte dos
medicamentos genéricos utilizados no país.
A Organização para a Proibição de
Armas Químicas (OPAQ) inspeccionara por cinco vezes as instalações desde 2014 e
nunca ali detectou um único indício capaz de conduzir à produção de engenhos
com essas características.
Os sinais de alteração do tipo de
guerra contra a Síria têm-se acumulado nos últimos dias através de
bombardeamentos sucessivos contra instalações do exército nacional, provocações
protagonizadas por Israel alegadamente para atingir as estruturas
iranianas que ajudam a defender a independência síria.
De certa forma pode dizer-se que
a guerra contra o Irão já começou em território sírio, podendo a colaboração
militar entre os dois países servir de pretexto à ampliação da área regional da
agressão estrangeira.
Como se o Império, agraciado
dogmaticamente com a «verdade» e arrastando a Europa como apêndice, ainda
necessitasse de pretextos quando se trata de garantir a manutenção da ordem
internacional «sob a liderança dos Estados Unidos no mundo inteiro».
Foto: Al Drago/Pool / EPA
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