#Publicado em português do Brasil
Eleição de Petro-Francia abala décadas de domínio das oligarquias. Resultado mostra: para enfrentar direita antissistema, é preciso expor seu vazio programático, mobilizar ruas, dialogar com jovens e e apostar num projeto radical de mudança
Boaventura de Sousa Santos* | Outras Palavras
Pela primeira vez na história da Colômbia um candidato de esquerda ganhou as eleições presidenciais. Pela primeira vez, uma mulher negra e da classe trabalhadora (mineira e empregada doméstica) foi eleita vice-presidente. O continente latino-americano não cessa de nos surpreender e, se as surpresas por vezes nos deprimem, outras vezes enchem-nos de esperança. Neste caso, a esperança é decisiva porque a alternativa, tanto na Colômbia como no continente, seria o desespero e o possível colapso da já frágil democracia. É, pois, importante analisar as causas desta vitória e o que ela significa.
Neste país de 49 milhões de
habitantes, em que um quarto dos eleitores tem 28 anos ou menos, a grande
maioria dos jovens votou
As principais reformas estruturais propostas por Petro e Francia são as seguintes: mobilizar a sociedade colombiana como sociedade cuidadora que reconheça e recompense o trabalho de cuidado das mulheres; estabelecer uma nova relação entre a sociedade e a natureza que dê prioridade à defesa da vida sobre os interesses econômicos, promova a transição energética e democratize o conhecimento ambiental; passar de uma economia extrativista a uma economia produtiva que diminua a desigualdade na propriedade e uso da terra mediante a reforma agrária que inclua o acesso e uso da água e transforme o mundo rural colombiano em peça-chave da justiça social e ambiental; garantir o cumprimento dos acordos de paz de 2016, promovendo um novo contrato social que garanta os direitos fundamentais, em particular os direitos das vítimas do conflito armado, e estimule uma política de convivência pacífica e de reconciliação.
É a primeira vez no continente em que uma agenda feminista centrada no cuidado tem tanta prioridade. Não se trata do feminismo de classe média, tantas vezes falsamente radical e politicamente equivocado (por exemplo, no caso do golpe de 2019 contra Evo Morales), mas antes do feminismo negro consciente da multiplicidade das opressões (sexistas, racistas, classistas) na esteira de Ângela Davis. É igualmente a primeira vez que a agenda ambiental assume tanta prioridade num programa de governo. Em qualquer destes casos não se trata de improvisações de última hora, mas de políticas e convicções construídas ao longo de anos e testadas na prática da atividade política anterior tanto de Petro como de Francia.
Estas eleições terão impacto no continente. Contribuirão certamente para fortalecer o momento de soberania e de autonomia em relação aos EUA que o continente vive em vésperas do endurecimento das relações entre os EUA e a China e da luta pelo controle dos recursos naturais e do comércio internacional que daí decorrerá. A partir de hoje, os presidentes do México e da Bolívia sentir-se-ão menos sós (e mesmo recompensados) na luta que recentemente travaram contra a farsa da última cimeira das Américas convocada pelos EUA, com as suas habituais exclusões unilaterais. Além disso, a democracia colombiana pode contribuir para desarmar os golpes antidemocráticos que se preparam no continente. É reconfortante ver o candidato perdedor, que se afirmara como antissistema, apressar-se a reconhecer os resultados eleitorais e a felicitar o candidato vencedor. E o mesmo se pode dizer do atual presidente Ivan Duque, com o seu telefonema a Petro, convocando-o para reuniões nos próximos dias de modo a garantir uma transição tranquila e transparente. Por outro lado, as eleições na Colômbia mostram a fragilidade dos candidatos da direita antissistema. A obsessão de Rodolfo Hernández com a corrupção apenas pretendia esconder que ele próprio estava acusado de corrupção. Talvez a obsessão de Bolsonaro com a possibilidade de fraude eleitoral pretenda apenas esconder que a fraude é ele próprio.
O impacto real destas eleições na
Colômbia vai depender de muitos fatores. Para já, voltou a respirar-se paz, o
que não sucedia desde 2018. No final do mês, a Comissão da Verdade entregará o
seu relatório final. Será certamente um documento importante com recomendações
que a nova equipa política não deixará de tomar
*Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
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