Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
Neste final de ano, a grande medida política anunciada pelo Governo português e a avançada pelo Banco Central Europeu (BCE), podendo não parecer, têm um traço comum: as duas constituem experimentações perigosas, que perspetivam o lançamento de mais petróleo na fogueira dos sacrifícios a impor aos trabalhadores e aos povos, nos tempos próximos.
O primeiro-ministro, numa estranha entrevista, anunciou uma nova prestação extraordinária de 240 euros, a que chamou "um outro aumento" (não é aumento, é ajuda momentânea) para "um milhão de famílias que têm prestações mínimas". A ajuda a estas famílias é mais que necessária e bem-vinda, e pode, como disse o comentador-mor do reino, "fazer a diferença". Fará, e muita. Ainda recentemente uma senhora reformada dizia, numa rádio, que os anteriores 125 euros lhe deram imensa alegria: comprou medicamentos que deve tomar todos os dias e já não tomava há muito tempo, e cumpriu o sonho de dar uma prenda ao seu neto.
Todavia, uma medida pontualmente positiva evidencia desgraças, por várias razões. Primeira, a sucessão de transferências monetárias ocasionais para os pobres, mantendo-lhes os apoios sociais em valores de pobreza, transforma-se numa fábrica de pobres agradecidos, e induz na sociedade a valorização da esmola e a aceitação do recuo dos direitos sociais. Este filme é muito velho em Portugal e uma das maiores pechas no nosso processo de desenvolvimento.
Segunda, quem sobrevive dependendo sempre da caridade alheia - venha ela da esmola de cidadão com posses, de instituições privadas e públicas, ou da vontade momentânea de um Governo - vê a sua dignidade delapidada, perde capacidade reivindicativa, é acantonado na sociedade, corporiza retrocesso social. Um pequeno exercício de memória poderá relembrar o Partido Socialista de que não há verdadeiros partidos socialistas/sociais-democratas sem direitos sociais.