quarta-feira, 5 de julho de 2023

ILHA VERDE E TERRA MORTA – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Castro Soromenho (foto) é nome de escritor angolano nascido em Moçambique, filho de português e mamã cabo-verdiana. Morreu na condição de apátrida, porque lutou contra o fascismo e o colonialismo português. Viveu em Paris onde conviveu com Câmara Pires, Mário Pinto de Andrade, Paulo Jorge, Pepetela e outros angolanos notáveis. Colaborou activamente com o MPLA. Internacionalista, deu uma mão à luta de libertação da Argélia. A extrema-direita francesa condenou-o à morte e teve de refugiar-se no Brasil, onde faleceu.

Durante os anos em que viveu exilado em Paris, trabalhou na editora Gallimard e colaborou regularmente nas revistas Présence Africaine e Révolution, onde publicou contos e dois trabalhos fundamentais sobre a Rainha Jinga. Fernando Costa Andrade (Ndunduma), sobre as suas actividades no exílio parisiense escreveu:

 “Castro Soromenho e Mário Pinto de Andrade catapultaram a Literatura Angolana, a própria e a dos nomes grandes da “Mensagem”, com destaque para o prisioneiro de Santo Antão, poeta Agostinho Neto, a dos jovens da revista “Cultura”, para as páginas e os livros de várias línguas, significando a primeira mensagem revolucionária e literária do Povo Angolano levada às suas audiências”.

Perseguido pelos terroristas da OAS (extrema-direita francesa contra a Independência da Argélia) Castro Soromenho viu recusado o seu visto de permanência temporária em França. Decidiu mudar-se com a família para o Brasil. Na Embaixada de Portugal em Paris deram-lhe um passaporte com o seguinte carimbo: “Válido para regressar a Portugal via Espanha”. Se o usasse era preso mal passasse a fronteira. Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade e Luís de Almeida entraram em acção e conseguiram-lhe um passaporte da Argélia Assim continuou em França, como argelino, até Dezembro de 1965, data em que partiu para São Paulo, Brasil.

Em Angola o jovem Castro Soromenho foi aspirante e chefe de posto na Lunda, Moxico e Luchazes. As terras do Império do Muata Iânvua foram a sua paixão. Trabalhou como “aspirante” em Saurimo. Aqui começou a escrever a sua obra monumental, conhecida como Trilogia de Camaxilo que inclui os livros Terra morta, Viragem e A Chaga.

A leitura de Terra Morta levou-me a conhecer o fabuloso Mosaico Cultural do Cassai, após uma reportagem sobre o rio Zambeze no seu curso em Angola. Obrigado, Castro Soromenho! Tive o privilégio de conhecer a Poesia em estado puro, a Dança, o Canto e a Música no seu estádio supremo. Leiam esta trova lá recolhida:

Não me chorem

Por ter pena

De estar vivo

Mortos são os ausentes

Saudosos das águas mansas

Do Luchico.

 

A sepultura da mãe do cungo

É à sombra do mucondo

Não me chorem 

Por ter pena

De me sentir vivo

E ainda pescar no Luchico.

 

Morta está a bela Namariata

Vestia pano de seda

Mas a fome dói tanto

Quem nada tem morre cedo

Os jovens não sentem medo

Deitam fora o feitiço.

 

Uma árvore gigante

Sozinha na imensidão da chana

É apenas minúsculo galho

Onde chora o cungo sem ninho.


Castro Soromenho foi jornalista do “Diário de Luanda” e colaborador do “Província de Angola” (Jornal de Angola). Em Portugal trabalhou no Diário de Lisboa, Diário Popular, Seara Nova e O Século. Deste Jornalista e Escritor Angolano, deixo-vos uma parte desta crónica sobre a Ilha do Príncipe, escrita em 1936, como se fosse hoje:

Mar sereno. O mundo, todo o mundo é azul em redor de mim. Azul o céu imenso e azul o mar profundo.

Navega o barco no Atlântico, rumo ao Continente Africano – caminho aberto ao destino dos homens aventureiros…

O barco deixa atrás de sua jornada longa estrada branca, ferida rasgada, a sangrar, por vigorosa hélice.

Seu sangue é branco de neve e brancas são as suas lágrimas.

O mar chora e geme…

À ré, o olhar perdido nos longes do Oceano, vejo desaparecer no seio das águas de onde brotou, a estrada branca dos sofrimentos do mar.

O Oriente começou a tingir-se de laivos róseos.

E ao longe, como numa aparição, ergue-se na placa azulina do Atlântico uma montanha toda envolvida num manto diáfano de nuvens. E sua crista, de tão altaneira que é, dir-se-ia gritar a loucura de querer romper o azul do infinito!

Aqui começa a tragédia da montanha que quer ser céu…

Paisagem de lenda.

As mãos do sol entraram a desnudar lentamente, com carícias de sultão, as vestes leves como sombras que cingem durante a noite a mais bela e a mais feroz ilha do Atlântico.

A Ilha do Príncipe – diamante verde encastoado no azul do mar – deixa-se desnudar e deixa-se possuir pelo sol fecundo, suprema alegria da vida!

E o barco aproxima-se devagar, lentamente rasgando o mar sereno.

A Ilha do Príncipe, miradouro do Equador, abraçada pelo sol, agora já sol alto e africano, é verde, toda verde, doidamente verde!

Esta alucinação de verde e azul é quadro de encantos, tela de maravilhas, sonho nado do génio dos deuses!...

Príncipe, paisagem de sonho, foram, decerto, os deuses que te ergueram em pleno Oceano, longe da profanação dos homens, para que teu deslumbramento fosse a sua maior aventura…

O mar, o mar que é tão bravo e grita tanto quando encontra a terra, à tua beira é manso, e meigo, e leve, e voluptuoso.

O mar é o teu amante.

Lá do alto da montanha, mirante do Sonho… às braçadas sobre braçadas, até junto do mar quietinho e caricioso, parece que rolam sem nunca mais acabar esmeraldas de estranho fulgor (…).

Esta amostra da crónica de Castro Soromenho é dedicada ao Ivo Pizarro, filho da Vera e do Mário, que me salvou da escuridão e do corte das telecomunicações. Assim continuo vivo, comunicando.

Se Castro Soromenho fosse um retornado ressabiado, portuguesito saudoso do colonialismo como o Agualusa, seria seguramente distinguido pelo governo de turno. Mas é simplesmente um escritor angolano que nasceu em Moçambique e morreu no Brasil na condição de apátrida. Lutou sob a Bandeira do MPLA.  

A sua Trilogia Camaxilo (Terra Morta, Viragem, A Chaga) e a obra “Descripção da Viagem à Mussumba do Muatianvua” (1892), de Henrique de Carvalho, deviam ser editadas pelo Ministério da Cultura e distribuídas às bibliotecas de todas as escolas angolanas. Uma informação: Já não há direitos de autor porque essas obras caíram no domínio público.

A obra de Henrique de Carvalho tem oito volumes com cerca de mil páginas, cada um. Os quatro primeiros são exclusivamente relatos e desenhos da viagem. O último volume inclui um tratado da Língua Chokwe. Não me apontem a pistola por falar de Cultura!

*Jornalista

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