quinta-feira, 3 de agosto de 2023

O TÃO VELHO PORTUGAL DESTA JORNADA

Dois séculos após a revolução liberal que deu o pontapé de saída na laicização da sociedade portuguesa, a amálgama entre identidade nacional e católica continua a ser descarada e reverencialmente promovida por um Estado que nunca operou a vital separação face à religião "oficial".

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

a campanha presidencial de 2016, de visita a uma escola secundária na área metropolitana de Lisboa, o candidato Marcelo fez, em aparente improviso, uma mui interessante preleção sobre o país. A dada altura, disse - cito de memória - algo como "o Portugal absolutista miguelista, o Portugal "velho" derrotado no século XIX pelos liberais, nunca desapareceu totalmente. Ainda aí anda, e de vez em quando tem irrupções."

Suponho que estas irrupções do miguelismo conservador, tradicionalista e anti-liberal que perdeu a última guerra civil ocorrida em território nacional (1832-1834), referidas pelo agora presidente da República como uma ameaça latente, à espreita, na sociedade portuguesa - ou como uma espécie de rio profundo, uma verdadeira natureza - podem ser, para diferentes pessoas e setores, coisas diversas. Desde logo, consoante o lado em que nos colocamos na disputa - a favor do "Portugal velho" ou do "novo" - e depois, claro, dependendo daquilo que vemos como herança do primeiro.

Gostaria de ter tido oportunidade de, na ocasião, perguntar a Marcelo - o Marcelo presidente da República e o Marcelo ex-presidente da Fundação da Casa de Bragança; o Marcelo filho do ministro do salazarismo e o Marcelo social-democrata; o Marcelo beato, que beija o anel dos curas e que lutou contra a legalização da interrupção da gravidez e do casamento das pessoas do mesmo sexo, e o Marcelo liberal, divorciado, ecuménico e desempoeirado, que qualificou a decisão de 2022 do Supremo americano suprimindo o direito ao aborto como "radical" e garantiu em 2016 que teria promulgado sem problemas o diploma da adoção por casais do mesmo sexo - em que específicas irrupções estava a pensar. Seis anos depois, porém, em maio de 2022, deu uma pista: "É tudo muito difícil numa pátria em que a monarquia absoluta durou do quase início da sua história até ao quase final do século XX".

Fica assim claro que para o PR o miguelismo se prolongou até ao estertor do salazarismo e que só o advento da democracia lhe pôs fim - mais ou menos, porque, como diz, "ele ainda anda aí".

Tenho recordado amiúde esta prédica marcelista, não raro a propósito de ditos e feitos do seu autor. Lembrei-me de novo dela ao ver um impante presidente da Câmara de Lisboa, malgrado definir-se como "agnóstico convicto" e garantir não ser batizado, a carregar, como se o princípio de separação entre Estado e igrejas fosse facultativo, um enorme crucifixo para dentro da sede da autarquia, nas vésperas do festival católico-mercantil que se vive a partir desta terça no país.

De resto, tudo o que envolve este acontecimento exala o peculiar odor do ranço miguelista. Mas - sosseguem - não por se tratar de uma manifestação de religiosidade católica.

É certo que Igreja Católica (IC) do século XIX esteve do lado de D. Miguel e sobretudo muito contra os liberais (que a desapossaram de muitas das suas propriedades, retiraram ao clero, como à nobreza, o lugar que detinha nas cortes, e permitiram o culto, ainda que apenas aos estrangeiros e em privado, de outras religiões); que a instituição continua, dois séculos depois, a manifestar um irredimível penchant pelos recursos do Estado, a comportar-se como se ainda representasse um culto oficial e não devesse explicações a ninguém sobre coisa alguma (chegando ao ponto de só em 2021, empurradíssima e após décadas de negação e pronunciamentos indecorosos, anunciar uma auditoria interna sobre abusos sexuais de menores, auditoria cujos resultados prontamente pôs em causa).

É certo que a sua estrutura é a última manifestação no mundo de uma monarquia absoluta, como de resto o próprio monarca Francisco, de forma algo sarcástica, reconhece. Mas, precisamente: sendo a Igreja Católica absolutismo vintage, está apenas a ser fiel à sua natureza, fazendo o que faz sempre que lhe dão espaço para isso. Acrescendo que não se pode confundir a empresa multinacional IC, com a sua misógina, desalmada e vendilhona hierarquia, com os crentes.

O que no fenómeno Jornada Mundial da Juventude constitui uma "irrupção" do Portugal velho é a forma como se quis, à laia de desígnio nacional, impor um acontecimento religioso a um país constitucionalmente (e, ouso dizer, já culturalmente) laico. Ora exaltando tal acontecimento como fruto e apogeu de um "catolicismo maioritário", manifestação do "sentir profundo" e da "alma" do povo - e portanto inatacável e indiscutível -, ora, naquilo que se diria uma obscena contradição, como negócio em que investimos milhões porque "vai dar muito retorno". Sendo que quanto menos se souber quantos milhões o Estado investiu e investirá e quem se aboletará com os alegados "retornos" melhor - o povo, à boa maneira absolutista, é para invocar como instância de legitimação, jamais como soberano democrático a quem se deve prestar contas.

Este espetáculo ignominioso é tanto mais chocante quando decorre durante uma maioria de um partido de matriz laica e social-democrata e sob os auspícios delirantes de um presidente que passa a vida a pregar sobre transparência, escrutínio democrático e uma correta alocação dos recursos, mas, miguelisticamente, esquece tudo isso estando em causa a sua fação religiosa.

Tanto mais chocante quando, num país que faz no ano que vem meio século de libertação simbólica do Portugal velho, vemos a generalidade dos partidos e das vozes públicas, temerosos de serem tarjados de "jacobinos" e "mata-frades", incapazes de aproveitar o questionamento e a revolta face aos gastos nas JMJ e ao escândalo do abuso sexual de menores para discutir o estatuto de exceção da Igreja Católica, quer em termos do seu jamais contabilizado financiamento público, quer do seu anacrónico enquadramento jurídico-legal (através da manutenção de um tratado internacional específico, a Concordata, que lhe confere privilégios incompatíveis com o princípio constitucional de separação e com a lei da liberdade religiosa).

Nada disso: o que vemos e veremos, para além de episódios caricatos como o do crucifixo do presidente da Câmara de Lisboa, é repórteres de TV a receber, deleitada e celebratoriamente, os "peregrinos" como se de fãs à porta de um concerto ou de um estádio de futebol se tratasse e não de uma gigantesca operação de propaganda religiosa.

Como se, afinal, a identidade católica não pudesse suscitar qualquer perplexidade, análise ou pergunta a sério, e a amálgama entre os objetivos da organização IC e do Estado português não devesse impor aos media um módico de sobriedade na cobertura.

Ná: análises assertivas, derrisórias e indignadas guardam-se para outros fenómenos religiosos - como o daquela comunidade que se declarou reino separado e exige do Estado o reconhecimento autonómico, assim como o direito à total opacidade e a tratar os seus súbditos/membros, inclusive crianças, em completa separação dos princípios legais e constitucionais em vigor no país (lembra alguma coisa?). Não para a religião oficiosa deste velho Portugal: como disse em 2005 ao DN uma das professoras da direção de um agrupamento escolar público da capital sobre a presença de crucifixos nas salas de aula, "a gente já nem os vê. E, para dizer a verdade, nunca refletimos sobre isso." De quantos séculos mais precisaremos?

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