sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Angola | Havemos de Voltar à Angola Libertada* -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Há aí uma cena de lutar pela libertação de Angola, tu alinhas? Se isso meter matar ricaços estou lá. Foi assim que nas zonas urbanas foi angariada alguma mão-de-obra para lutar contra os ocupantes. A coisa é um nadinha primária. O meu amigo e controleiro Gigi dizia mesmo que é reaccionária. Mas quem não tem cão pode perfeitamente caçar com gato. Com esta matéria humana mas também com revolucionárias e revolucionários de verdade Agostinho Neto conseguiu comandar a luta armada até à vitória. Ele garantiu ao mundo, muitos anos da Independência Nacional, que havíamos de voltar à Angola libertada.

A caminho da liberdade, em 1974, fui ao Zaire de Mobutu fazer a cobertura do combate do século entre os boxeurs George Foreman e Muhammad Ali (Cassius Clay). Kinshasa nesse dia foi a capital do mundo. Comigo foi o Gouveia, uma figura digna de uma estátua ao sucesso. Ele era aprendiz no laboratório fotográfico do Diário de Luanda. Quando quase todos os profissionais partiram para Portugal com medo da “independência dos pretos” ele saiu da câmara escura e passou a ser repórter fotográfico, devidamente apadrinhado pelo Luciano Rocha e por mim, que éramos da direcção do Sindicato dos Jornalistas. 

O Bernardo, mestre do fotojornalismo, deu-lhe umas lições práticas e em poucos dias estava pronto. Após o primeiro dia da Angola Libertada o Gouveia e decidiu que ia ser repórter da caneta. Falei-lhe da gramática, do alinhamento das palavras, dos sons, das vírgulas, dos acentos mas ele não se intimidou. Teve o bom senso de ir para uma embaixada e aí concluiu uma carreira profissional bem-sucedida. Nunca teve de mostrar a ninguém que tinha um conflito insanável com a gramática.

Em Kinshasa fizemos umas reportagens pitorescas. O senhor Coutinho, um comerciante português com 40 anos de Zaire e Congo Belga, indicou-nos os melhores locais para mostrarmos a verdadeira Kinshasa. Um deles era uma praça nos arredores da cidade onde se vendia tudo, desde camisas de vénus a camiões. Mas também existia uma banca que fornecia diplomas de cursos superiores. O mais barato (tinha de ser…) era o de jornalista, custava 50 dólares. O mais caro, medicina, 600 dólares!

O Gouveia queria comprar um diploma de engenheiro electrotécnico e arrumar a máquina fotográfica. Vê lá, pensa bem. Se todos os engenheiros forem assim nunca mais temos luz em casa para ler. Não gastes as ajudas de custo nessa porcaria. O preço de um engenheiro era 200 dólares. O Gouveia desistiu da engenharia. Mas outros mais espertos do que ele apareceram na Angola libertada com papéis comprados num qualquer mercado informal.

De repente lembrei-me que o Chico Simons adorava fazer de médico. Quando chegávamos à recepção de um hotel ele pedia papel e uma esferográfica “para passar uma receita aqui ao meu amigo”. Dizia qual era o medicamento que me ia receitar e como devia tomá-lo. Os empregados da recepção passavam a chamar-lhe senhor doutor. E se levasse um diploma de médico ao Simons? Marralhei com o vendedor e ele deixava o papel por 350 dólares. Levava comigo ajudas de custo generosas, suficientes para a bebida e a papelada. Aí o Gouveia disse-me para ter cuidado, com a saúde não se brinca. Desisti de fazer a surpresa ao meu amigo.

O combate correu mal ao campeão do mundo dos pesos pesados, George Foreman. Levou uma surra de Muhammad Ali que até a mim doeu. No quinto assalto Cassius Clay bateu tão forte que o adversário tremeu, cambaleou e só não desmaiou porque o gong  salvou-o de ir ao tapete. No oitavo e último assalto Foreman tinha a cara feita num oito. Muhammad Ali entrou a matar. Mais uma surra monumental. Faltavam dez segundos para o fim e Muhammad Ali disparou cinco murros potentes seguidos, sem descanso. O último “directo de esquerda” na cara de Foreman fez o campeão do mundo desabar. Estava derrotado por KO. 

O Ministério da Saúde vai fazer um investimento de 26,5 milhões de dólares na contratação de 341 médicos especialistas russos. Maurílio Luyele, dirigente da UNITA e médico com diploma de 350 dólares, está contra! O diplomado de papel comprado diz que cada médico importado vai ganhar seis vezes mais do que os médicos angolanos. 

O Maurilio é “ministro da saúde” do governo à sombra da UNITA. Defende que a aposta certa “é formar mais especialistas angolanos”. Mas como se faz isso se não importarmos quem os forme? Essa parte, a alimária galinácea não explica. Depois de bolsar a sua xenofobia (atenção autoridades competentes, é crime de ódio!) disse o diplomado de papel comprado: “Não há dinheiro para aumentar o salário dos médicos nacionais mas sempre surge dinheiro para sustentar esta cooperação que, do nosso ponto de vista, é já uma aberração”.

O médico especialista angolano Francisco Magalhães Inácio teve de estudar para se licenciar. Teve de trabalhar muito para aprender a fazer. Teve de trabalhar e estudar mais ainda para se especializar. Por isso, sobre a contratação dos 341 especialistas disse que é muito importante porque eles vão formar médicos angolanos: “É uma oportunidade para valorizarmos os quadros nacionais e uma troca de experiências no campo da ciência”. Imaginem que cada médico especialista contratado pelo Ministério da Saúde forma dez médicos especialistas angolanos em dois anos. Ficamos com milhares de especialistas! À UNITA isso não convém nada.

Os xenófobos usaram este argumento para reprovarem a contratação de centenas de médicos especialistas russos: “Em 2018 o governo revelou que 1.500 médicos formados dentro e fora do país estavam desempregados”. É natural que no primeiro ano de poder do Presidente João Lourenço tenham usado esse argumento para deitar abaixo o que estava para trás. Alguém explique a estes bagres que há profissões liberais. Os médicos são profissionais liberais. Só está desempregado quem quer ou comprou um diploma não reconhecido. 

Na Angola Libertada estamos a regressar aos tempos em que o racismo imperava. O tribalismo era uma virtude. A xenofobia, um aplauso. Precisamos de libertar Angola dos crimes de ódio e urgentemente. Até o MPLA está em perigo.

Hoje acordei com espírito de escuteiro. Vou fazer a primeira acção do dia. Por favor, expliquem ao senhor Presidente da República que há uma grande diferença entre “haver” e “houver”. Fica mal ao Chefe de Estado de um país de Língua Oficial Portuguesa dar pontapés tão violentos na gramática.

Mas quem chegar hoje à nossa Angola amordaçada e consumir a TPA, canal público de televisão, fica com os cabelos em pé, se não for careca. Um repórter muito despachado diz “aqui à minha trás”. Uma apresentadora abre as vogais fechadas e fecha as abertas. O director do canal não é capaz de acertar o sujeito com o predicado. Ainda não sabe que concordam em género e número. Confundem encarregado com encarregue.

Uma instituição do Estado pertencente ao Ministério do Ambiente bate todos os recordes. Puseram a cantora Noite e Dia (sou fã dela!) a fazer uma campanha contra o uso indiscriminado dos sacos de plástico. Mas a artista fala em “sacos plasticos”. Dois erros graves. Não existem “sacos plasticos” mas sim “sacos DE plástico”. Isso mesmo, “plástico” leva acento agudo no “a”.

No Ministério do Ambiente, dono da campanha, ninguém vê estes erros graves? Impossível porque essa janela de publicidade está aberta várias vezes durante as emissões diárias da TPA. Estão a fazer ambiente para o analfabetismo reinante nos Media. Andam a comprar muitos diplomas nos mercados da especialidade. Mas não desesperem. Havemos de libertar novamente Angola.

Lago de Carvalho deu uma entrevista muito interessante ao Novo Jornal. Disse que na fase em que a produção petrolífera estava em alta e o preço do barril de “crude” era elevado, o dinheiro foi roubado em vez de investido em projectos estruturantes. Tudo verdade. Espero que o autor desta constatação não me leve a mal, mas ouso recordar-lhe que o sistema adoptado após o Acordo de Bicesse foi a democracia representativa e a economia de mercado. 

A maquineta do capitalismo tem um depósito para os combustíveis e só funciona se colocarmos lá dentro, ao mesmo tempo, a exploração de quem trabalha, a corrupção e o roubo que pode ir até às formas violentas de latrocínio. Lago de Carvalho, claro que o dinheiro foi roubado e vai continuar a ser. Mas não vejo um partido reclamar o regresso ao socialismo e à democracia popular. Todos estão confortáveis na “economia de mercado” e com os sicários da UNITA na Assembleia Nacional. Calma. Um dia regressamos à Angola libertada.

*Verso de Agostinho Neto

*Jornalista

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