terça-feira, 19 de setembro de 2023

Angola | Os Primeiros Serviços Médicos em Angola* -- Artur Queiroz

Notas Sobre o Nascimento do Ensino Superior

Artur Queiroz*, Luanda

O Ensino Superior nasceu em Angola no ano de 1963, com a criação dos Estudos Gerais Universitários, no meio de grande polémica que opôs o então ministro do Ultramar, Adriano Moreira, ao governador-geral, general Venâncio Deslandes.

Silva Teles, no Congresso Colonial de 1924, propôs, sem êxito, a instauração do ensino superior nas colónias, integrado na Universidade Portuguesa. O bispo da Beira, D. Sebastião de Resende, propôs a criação de estudos superiores em Moçambique. Não foi ouvido. Figuras como Norton de Matos e Vicente Ferreira empenharam-se na sua criação em Angola. Não conseguiram. Em Fevereiro de 1958, o Professor Orlando Ribeiro propôs ao Senado da Universidade de Lisboa a extensão do ensino superior ao ultramar. Mais um falhanço.

Em 4 de Fevereiro de 1961, explodiu em Luanda a luta armada de libertação nacional. Em 15 de Março ocorreu a Grande Insurreição em todo o Norte de Angola. O general Venâncio Deslandes foi nomeado governador-geral. Salazar incumbiu-o de enfrentar os revoltosos. Quando conseguiu travar a revolta, propôs a Lisboa negociações políticas com base na criação de governos em Angola e Moçambique exactamente com os mesmos poderes do governo de Lisboa. 

Ao mesmo tempo, Deslandes publicou no Boletim Oficial o Diploma Legislativo número 3.235, de 21 de Abril de 1962, que criava Centros de Estudos Universitários em Luanda, Huambo, Benguela e Lubango. Adriano Moreira, ministro do Ultramar, reagiu mal e pediu um parecer à Junta Nacional de Educação, que considerou inconstitucional o diploma de Venâncio Deslandes. O governador foi demitido por Salazar.

Poucos dias depois da demissão do governador, Adriano Moreira assinou o Decreto-Lei número 44.530 de 21 de Agosto de 1962, que criou o ensino superior em Angola, instaurando os Estudos Gerais Universitários, integrados na Universidade Portuguesa.

O Decreto-Lei foi publicado no Diário do Governo número 191, Primeira Série, de 21 de Agosto de 1962 e estabelece que o ensino superior em Angola cria os seguintes cursos: Ciências Pedagógicas, curso Médico-Cirúrgico, Engenharia Civil, de Minas, Mecânica, Electrotécnica e Químico-Industrial. No Huambo (Nova Lisboa) abriram os cursos de Agronomia, Silvicultura e Veterinária.

Outros decretos tratam de pormenores como o regime da nomeação do pessoal docente. Hoje ainda estão no activo os primeiros médicos, engenheiros e professores formados nos Estudos Gerais Universitários. No ano lectivo de 1963 começaram as aulas.

Adriano Moreira foi um ministro do Ultramar controverso. Criou o Ensino Superior e aboliu o Estatuto do Indigenato, que suportava um autêntico regime de apartheid. A quase totalidade das populações das colónias não tinha direito a Bilhete de Identidade e por isso milhões de angolanos não podiam frequentar o ensino oficial. Mas ao mesmo tempo assinou a Portaria 18.539, de 17 de Junho de 1961, que reabriu o campo de concentração do Tarrafal, destinado aos presos dos movimentos de libertação das colónias. Salazar demitiu-o em 1963, por ser demasiado reformista.

Escola de Medicina

A primeira escola de ensino superior em Angola abriu em 11 de Setembro de 1791, na cidade de Luanda, por iniciativa da rainha D. Maria I, que um ano antes nomeou físico-mor José Pinto de Azeredo, com a obrigação de “curar além do corpo militar daquele reino, os doentes do hospital da dita cidade; e igualmente abrir escola de medicina para os que se queiram dedicar ao exercício e prática dela”.

O documento régio refere que a Escola de Medicina deve funcionar no Hospital Real (Misericórdia). Os alunos aprendiam Anatomia (cútis, membrana adiposa, músculos, ossos, artérias, veias, vasos linfáticos e sistema nervoso) e Fisiologia (nutrição relacionada com a digestão, circulação, respiração e excreção).

Em 1794, foi aprovado o primeiro médico: João Manoel d’Abreu, que prestou provas de Anatomia, Fisiologia, Química, Matéria Médica e Prática da Arte. O curso teve a duração de três anos. 

José Pinto de Azeredo foi um cientista notável. Recomendamos vivamente a leitura da sua obra “Ensaios Sobre Algumas Enfermidades de Angola”, de 1799. E manuscritos muito importantes. O número 8486, que pode ser consultado na Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa), tem o título “Matérias Variadas de Anatomia”. Contém igualmente a Oração de Sapiência que ele proferiu na abertura da Escola de Medicina de Luanda. Existe nesta biblioteca também o manuscrito 8484, que trata de plantas e remédios vegetais, química e medicamentos de origem vegetal, animal, mineral e suas doses.

O manuscrito 1126 de Azeredo está na Biblioteca Pública Municipal (Porto). Tem o título “Tractado Anatómico dos Ossos, Vasos Lymphaticos e Glandulas”. O texto inclui uma exortação aos estudantes de medicina.

Primeiros Serviços Médicos

A assistência médica era fundamental na fase da ocupação militar portuguesa, que começou imediatamente após a fundação de Luanda pelo capitão-general Paulo Dias de Novais. As incursões armadas através do rio Cuanza, iniciadas em 1580, justificaram o nascimento do primeiro hospital. 

O padre Baltazar Afonso, em carta datada de 4 de Julho de 1581, escreve que “no porto de Cambambe estivemos oito meses, onde houve muitos doentes e mortos. Os portugueses mortos eram aos centos, pretos, alguns 40. Ordenei que se fizesse um hospital neste arraial para os doentes no qual havia continuamente dez, doze internados, e foi esta uma obra que até a estes gentios pareceu bem”

O primeiro hospital em Angola nasceu na vila de Cambambe, destino permanente de civis e militares portugueses, que procuravam as minas de prata. Só em 1594 chegou a Luanda o primeiro médico, Aleixo d’Abreu, integrado na comitiva do governador João Furtado de Mendonça. Foi ele que encontrou remédio para o “Mal de Loanda” (escorbuto) que no século XVI dizimava a população da cidade. E escreveu um livro sobre a matéria, mas em latim. Apesar da sua importância histórica e científica, nunca foi traduzido para português.

Só em 1621 Luanda voltou a ter direito a cuidados de saúde médicos. Até então imperavam os curandeiros. Nesse ano chegaram a Luanda o cirurgião João Correia de Sousa e o boticário Manoel do Quintal. Esta penúria acabou com a construção do Hospital da Misericórdia de Luanda (Hospital Real) em 1628. 

Em 1648, Salvador Correia de Sá e Benevides nomeou João Pinto de Barros cirurgião-mor da sua armada e do Reino de Angola. Em Dezembro de 1649 Bernardo Pinto foi nomeado cirurgião-mor de Benguela. Mas o primeiro hospital na cidade de São Filipe, só abriu em 1674. 

Diagnósticos e Terapêuticas

O ano de 1670 foi muito importante porque marcou a publicação do “Tratado das Queixas Endémicas e Mais Fatais Nesta Conquista”, sem autor conhecido. Em 1675 nasceu o Hospital da Misericórdia, em Massangano.

No ano de 1715 a situação era dramática. Só existia em Luanda um médico: Manuel de Andrade Goes. Em 1727, documentos consultados revelam que Luanda estava sem médico porque o Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) perseguiu o físico Tomé Guerreiro Camacho. Não há notícia da natureza do crime nem da sentença. O habitual era a morte na fogueira ou torturas violentas que deixavam os supliciados incapazes para o trabalho. As fogueiras da Jamba não nasceram do nada. 

Em 1765, o governador de Benguela, Sousa Coutinho, mandou construir um hospital, cuja administração foi entregue à Irmandade de Nossa Senhora do Pópulo (Misericórdia). Esta unidade foi dotada com um cirurgião, um boticário, um barbeiro e os enfermeiros necessários. Em Luanda, nesta época, existiam dois médicos. Benguela vivia na mesma penúria. O resto de Angola era pouco mais que paisagem.

Prevenção das Doenças

O médico Francisco Damião Cosme publicou, em 1766, uma obra com prescrições de higiene, sobretudo cuidados com a alimentação, vestuário e habitação. Um “tratado” de prevenção de doenças através de informação para a saúde. O texto ensina a evitar e tratar as doenças mais comuns na época. Receita o consumo abundante de verduras, cebola, alho, tomate e jindungo. Além da ingestão quotidiana de sumos de laranja e limão.

O manuscrito de 1770, do médico Pedro Augusto Ferreira, ensina os que se “internam pelos sertões” a cuidarem da saúde. É um verdadeiro manual de sobrevivência “no mato”. E aconselha ao exercício físico quotidiano, cuidados de higiene e “ivitar as grandes paixoens da Alma”.

Pedro Augusto Ferreira exige a limpeza das ruas e a inspecção dos açougues (talhos) e das quitandas. E afirma: “as ágoas para se apurarem, devem ferver”.

Medicamentos sem Eficácia

O governador D. Miguel António de Melo, em 1798, informou Lisboa que os medicamentos enviados para as boticas de Angola são “incapazes, outros supérfluos, e outros tão mal preparados que chegam a Luanda sem virtude séria”.

Em 1800, o governador mandou “desanexar” o Hospital Militar do Hospital Real (Misericórdia). Em 1805, Lisboa ordenou que de Salvador da Baía fossem enviadas para Angola vacinas contra a varíola. Chegaram ao destino, deterioradas. Em 1883 foi inaugurado o Hospital Maria e esta unidade marcou o início em Luanda de um serviço de saúde geral e organizado.

Os serviços de saúde eram tão precários que em 1820, o governador da Capitania de Benguela informou que morreu o cirurgião-mor José Joaquim Ferreira e “os habitantes da cidade ficaram sem assistência médica”.

Os serviços médicos em Angola nasceram oficialmente com o Decreto de 14 de Setembro de 1844. No ano seguinte foi aprovado o Plano de Organização e Regulamento do Ensino Médico nas Províncias Portuguesas d’África”. Só em 1963 este decreto saiu da gaveta.

O quadro do pessoal dos serviços de saúde em Angola, no último quartel do século XIX era o seguinte: um físico-mor, um cirurgião-mor, um cirurgião de primeira classe, outro de segunda classe e um farmacêutico. 

O quadro era reforçado com os cirurgiões militares em comissão de serviço. Até 4 de Fevereiro de 1961, o quadro não era muito diferente, ainda que Angola tivesse crescido com as províncias do Leste, Centro e Sul, no início do século XX. Apenas em 1927 o actual mapa de Angola ficou definido. 

Em 1940, existiam os Círculos Sanitários do Congo, Malanje, Bié, Benguela e Huíla, mais o Círculo Autónomo de Luanda. Em toda a colónia existiam 85 delegados de Saúde. 

No Congo Português (hoje província do Uíje, Zaire e Cabinda) o quadro era o seguinte: Chefe dos Serviços Sanitários, médico Jacinto Vasconcelos, residente na vila do Uíje. Enfermeiros estavam assim distribuídos: Na Vila do Uíje, Alberto Domingos Nunes mais três auxiliares. Na Vila do Songo, Paulo Bunga e três auxiliares. Na Vila do Bembe, António Pereira da Silva mais três auxiliares. Na Vila do Lucunga (incluía a aldeia do Negage) Domingos Santos e um auxiliar.

O Médico do Rei

O Professor Catedrático de Medicina Carlos Joaquim Tavares, natural da cidade de Benguela, onde nasceu em 1856, era o médico pessoal do rei D. Carlos e da família real. É considerado o primeiro clínico negro nas cortes europeias. Foi estudar para Lisboa na Escola Politécnica mas em 1882 matriculou-se na Escola Médico-Cirúrgica onde se licenciou e doutorou. Dociumentos da +época apontam-no como o alunio mais briklhante do seu curso.

Além de Professor de Medicina e médico do rei, o benguelense Carlos Tavares foi Vice-Presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa. E publicou artigos cient´+ificos de excdepciuonal valor. A sua tese de doutoramento, “O Nervo do Gosto ou de Wrisberg” foi pub licada nu,ma erevista da especialidade. Também foi qualificado de “elevado valor científico” o seu artigo intitulado “Algumas Palavras Sobre o Arthritismo”.

O Professor Catedrático Carlos Tavares faleceu em Fevereiro de 1912, na capital portuguesa, tinha 56 anos.  A Sociedade de Ciências Médicas e a Faculdade de Mecicina de Lisboa publicaram elogios fúnebres onde punham em evidência as qualidades excepcionais do médico e cientista. Foi o primeiro angolano negro Professor Catedrátrico de Mewdcijdna numa escola superior portuguesa.

O Príncipe Luís Filipe (herdeiro do trono) Angola e África do Sul, em 1907. O Professor Carlos Tavares, na sua qualidade de médico pessoal da família real, vinha integrado na sua comitiva. Luanda recebeu o futuro rei em festa. A vereação das Câmara Municipal deu o nome de Alameda do Príncipe Real a uma rua no Miramar. Presumo que ainda existe.

Luís Filipe de Luanda seguia para a África do Sul, colónia britânica. O comissário inglês mandou uma mensagem ao major Eduardo Augusto Ferreira da Costa, governador-geral de Angola, dizendo que ao tomar conhecimento de que existia um  negro na comitiva do príncipe real, “informo que “o negro deve ficar em Luanda” porque na África do Sul não podia ser alojado em acomodações para brancos. Nessa época Portugal era uma espécie de feitoria de Londres. A infâmia foi aceite! Carlos Tavares ficou em Luanda, No seu lugar seguiu o director do Hospital Maria Pia (Josina Machel). Aproveitou e foi visitar a família em Benguela.

Paulo Jorge, quando era governador de Benguela, aceitou o desafiou que lhe lancei de publicar um livro sobre dois benguelenses excepcionais: Augusto Bastos e Carlos Tavares. A guerra de agressão estrangeira não permitiu. Hoje é possível. O governador Luís Nunes encarrega Jaime Azulay de arranjar uma equipa de repórteres e limpam a poeira do esquecimento de dois benguelenses cujas vidas prodigiosas os jovens precisam de conhecer.

O Professor Catedrático Carlos Tavares foi exemplo para jovens angolanos que decidiram estudar Medicina quando ainda não existia ensino superior em Angola. Alguns eram negros: Agostinho Neto, Américo Boavida, Jaime Novais, Pedreira.

O Médico da Liberdade

Agostinho Neto trabalhou nos Serviços de Saúde nos anos 40, antes de partir para Portugal estudar Medicina na Universidade de Coimbra. As suas actividades políticas anti-colonialistas e pela independência de Angola levaram-no à prisão, em Lisboa e no Porto. Em julho de 1957 foi libertado e prosseguiu os seus estudos. Concluiu a Licenciatura em Medicina na Universidade de Lisboa, em 27 de Outubro de 1958. Depois de fazer o internato médico e a especialidade regressou a Angola onde existiam poucos médicos e os negros contavam-se pelos dedos de uma só mão e ainda sobravam.

No dia 8 de Junho de 1960, o director da PIDE, São José Lopes, prendeu pessoalmente o médico Agostinho Neto no seu consultório de Luanda. Foi depois deportado para Portugal onde ficou preso na cadeia do Aljube, na capital portuguesa. Luanda perdeu um médico mas o Povo Angolano ganhou um líder invencível na luta pela Independência Nacional.

Pouco tempo exerceu a Medicina em Angola e Cabo Verde (Ilha de Santo Antão), para onde foi deportado depois de libertado da cadeia da PIDE na cidade do Porto. Optou por lutar pela Libertação de Angola. O Médico da Liberdade.

*Homenagem ao Médico Agostinho Neto

*Jornalista

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