quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Cristiano Ronaldo, bom de bola no pé e de espada na mão -- com vídeos

Cristiano de Moura, ou um fausto português

Em 2017, Ronaldo assinou uma petição contra o juiz que, num acórdão sobre violência doméstica, apelidou a vítima de "adúltera" e lembrou sociedades que castigam adultério com a morte. Em 2023, o futebolista vive num desses países, celebrando-o, espada ao alto e mascarado de saudita: "Adoro viver aqui".

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

“A violência doméstica é um problema muito grave. As vítimas merecem ser tratadas de forma digna e justa".

Estas duas frases foram assinadas por Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro, em outubro de 2017, na petição/carta-aberta "Essa mulher somos nós". Apresentada por vários coletivos feministas, a petição, que reuniria mais de 29 mil assinaturas, reagia à notícia de que um juiz do Tribunal da Relação do Porto - Neto de Moura - apelidava, nas suas decisões, vítimas de violência doméstica de "adúlteras" e, para contextualizar a "acentuada diminuição da culpa" do agressor, lembrava a existência de "sociedades em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte".

Seis anos depois, o mesmo Cristiano Ronaldo celebra, espada na mão e em traje tradicional, o dia nacional do país onde vive desde janeiro e no qual, precisamente, o adultério é castigado com morte por lapidação; se a pessoa condenada tiver sorte, é decapitada - com uma espada como aquela que ele tem na mão.

No vídeo celebratório, divulgado esta quinta-feira pelo AlNassr, o clube de futebol no qual o jogador português está sob contrato até 2025, surgem outros jogadores estrangeiros, e vários sauditas, adultos e adolescentes, todos em traje tradicional - e todos homens. Todos rodeando Ronaldo, como guarda de honra de um rei; numa das partilhas, de um adepto do ALNassr, é mesmo designado como "rei dos reis".

Rei dos reis. Olhando-nos orgulhosamente nos olhos, o futebolista madeirense parece dizer-nos isso mesmo: sou o maior, olhem para isto. Olhem como cheguei ao topo, estou onde quero.

Rei dos reis. Olhando-nos orgulhosamente nos olhos, o futebolista madeirense parece dizer-nos isso mesmo: sou o maior, olhem para isto. Olhem como cheguei ao topo, estou onde quero.

Rei dos homens num país de homens e para homens.

Quando, agoniada, partilhei um excerto do vídeo no ex-Twitter, muita gente perguntou: que queres tu que ele faça? É só um jogador de futebol. Está a fazer o que sabe fazer. Política não é com ele. E os países que fazem negócio com a Arábia Saudita? E os governantes que apertam a mão dos dirigentes sauditas mesmo depois de terem visto o que se atrevem a fazer a críticos como o jornalista Jamal Khashoggi, assassinado e cortado às postas num consulado saudita na Turquia em 2018?

Também houve quem dissesse: vais exigir a todos os imigrantes que trabalham na Arábia Saudita que se venham embora?

É verdade - Cristiano Ronaldo é um jogador de futebol. Um jogador de futebol imensamente bem-sucedido, imensamente rico - a interminável página sobre ele na Wikipédia garante que foi o primeiro futebolista a ser bilionário (não faço ideia, mas sendo assim talvez tivesse dado para pagar os impostos na boa, em vez de andar a fugir-lhes) -. imensamente, por tudo isso, influente. Imensamente capaz de, com o seu exemplo, condicionar a perspetiva de milhões que o admiram.

Houve uma altura em que pareceu que ele poderia querer usar isso de uma forma positiva. Como sucedeu, lá está, com a assinatura naquela petição, à época interpretada em relação com a sua própria experiência familiar (a mãe terá sido, segundo o que afirmou publicamente, vítima de agressões do pai), mas também como uma deliberação de querer usar o seu poder para além da área do desporto. O seu nome naquela petição dizia que o miúdo paupérrimo nascido na paupérrima Câmara de Lobos, que à força de ganas e talento se guindou ao cume da fama e da fortuna, se tinha posto, com todo o impacto do seu nome, do lado das mulheres vitimizadas e revitimizadas pela violência e justiça machistas.

"Muita bem, Cristiano", pensei na altura. "Tens o coração no sítio certo."

Não me passou pela cabeça que houvesse naquele gesto tão inesperado outros intuitos, uma tática qualquer - estávamos no início do movimento metoo, mas ainda não rebentara o escândalo Kathryn Mayorga. Fez Ronaldo o que fez para ganhar créditos em antecipação daquilo que sabia que poderia vir a acontecer (o caso iniciara-se em 2009 mas só foi tornado público no final de 2018)?

Não sei. O que sei é que quem assinou aquela petição feminista vive desde janeiro num dos países mais machistas do mundo. Um país onde uma lei assentou, em dezembro de 2022 - quando Ronaldo negociava o seu contrato multi-milhionário com o clube saudita - que as mulheres têm de ter um "guardião" masculino e obter o consentimento deste para casar, ou para aceder a certos cuidados de saúde; um país no qual são obrigadas, no casamento, a obedecer ao marido. Um país onde uma mulher e um homem não podem viver maritalmente sem serem casados - a não ser, claro, que o homem seja uma estrela estrangeira contratada a muitas vezes o seu peso em ouro para promover a imagem do país e para, lá está, fazer crer que afinal não é assim tão mau.

Para fingir que não é assim tão mau - é para isso sobretudo que Cristiano Ronaldo está a receber as suas, dizem, duas centenas de milhões anuais dos cofres sauditas, foi para isso que levou para lá a família, incluindo filhas e filhos (meu deus, Cristiano, quem é que, podendo escolher, e se um Cristiano Ronaldo pode escolher, leva filhos e sobretudo filhas para essa monstruosidade de país?).

"Estou muito contente na Arábia Saudita e adoro viver aqui", diz uma frase sua partilhada com o vídeo. Também há de ter adorado aterrar no Irão a 18 de setembro, para um banho de multidão em pleno aniversário da morte de Mahsa Amini. A Mahsa Amini, Cristiano, era uma miúda curda de 22 anos que a 16 de setembro de 2022 morreu depois de detida pela polícia de costumes iraniana por alegadamente não ter o lenço islâmico bem posto. E muitas miúdas e miúdos, mulheres e homens morreram durante o ano que se seguiu em protestos contra essa barbaridade, contra a barbaridade que é a lei de um país que trata as mulheres como pessoas de segunda. Ou terceira, ou quinta - como a tua tão adorada Arábia Saudita do teu tão adorado contrato.

Por um décimo do que ele ganha todos faríamos o mesmo, disse alguém no ex-Twitter. Esse é o ponto, não é? É esse o exemplo, essa a assinatura, essa a nova carta-aberta: desde que paguem o suficiente, desde que deem graxa o suficiente, desde que te tratem bem, desde que a ti não te chicoteiem, nem prendam, nem proíbam de tomar decisões, nem te ameacem de lapidação, está tudo bem. Não há problema, é sempre aos outros que cabe tratar desses assuntos - é sempre aos outros que cabe a responsabilidade de dizer não.

Só uma dúvida: quando se passa assim para o lado negro da força, será que se dá por isso? Porque acredito que não. Acredito que a maioria dos faustos nem se dê conta de o ser, não tenha sequer aquele momento de Cristo no deserto em que à oferta do diabo - "tudo isto pode ser teu" - se diz sim ou não. E se alguém podia dizer "já é tudo meu" eras tu, Cristiano Ronaldo. Que tristeza tão triste.

VER VÍDEOS NA PÁGINA DE TEXTO ORIGINAL NO DN

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