sábado, 16 de setembro de 2023

O Soldado Desconhecido da Humanidade* -- Artur Queiroz

Presidente Salvador Allende, Chile, eleito democraticamente, deposto e assassinado em golpe de estado dos EUA

Artur Queiroz*, Luanda

O sangrento golpe militar no Chile capitaneado por Richard Nixon, Henry Kissinger e Richard Helms foi apenas um episódio na longa lista de morticínios causados pelo estado terrorista mais perigoso do mundo só no século XX. Washington impôs a ferro e fogo “governos amigos” no Panamá, Honduras, Nicarágua, México, Haiti e República Dominicana. Nestes campos de batalha o sangue correu pelas ruas. Washington plantou no planeta milhares de soldados desconhecidos da Humanidade.

Militares dos EUA e “aliados” europeus mais o Japão invadiram a Rússia em 1918 com 250.000 soldados numa tentativa de matar o novo regime (soviético) e derrotar o Exército Vermelho. A invasão maciça foi no Norte da Rússia, em Arkhangelsk, e simultaneamente na Sibéria, em Vladivostok. Entre as tropas invasoras estava uma amostra do estado terrorista mais perigoso do mundo: 13.000 homens. Em 1920, os invasores retiraram vergados ao peso da derrota. Deixaram no terreno os japoneses fazendo o papel que hoje faz a Ucrânia. Nos campos de batalha russos ficaram mais soldados desconhecidos da Humanidade.

Após os anos 40 os golpes militares sangrentos “made in USA” ocorreram nas Filipinas e na Península da Coreia. Aqui a guerra está em pausa. A Coreia do Norte acaba de comemorar os 70 anos da vitória militar sobre os invasores norte-americanos que saíram dos campos de batalha com o rabo entre as pernas. Entre os patriotas coreanos ficaram para sempre mais soldados desconhecidos da Humanidade.

Em 1953, em parceria com o Reino Unido, os EUA deram um golpe militar no Irão. Em 1961 os “marines” invadiram Cuba (Baía dos Porcos). No mesmo ano, golpe de estado militar na Indonésia. Em resumo: Entre 1946 e o ano 2000 (viragem do século) o estado terrorista mais perigoso do mundo protagonizou 81 intervenções armadas no estrangeiro.

A criadagem doas Media está a falar muito da Coreia do Norte a propósito da visita do Presidente Kim Jong-un à Federação Russa. Convém conhecer a História. Após a rendição do Japão em Agosto de 1945 nasceu a República Popular da Coreia. Em 8 de Setembro de 1945 tropas dos EUA desembarcaram na península e criaram o Governo Militar do Exército dos Estados Unidos da América na Coreia (USAMGK). Este “governo” actuou a sul do Paralelo 38. Ainda hoje é assim.

Entre 1946 e 1949 os EUA participaram nas operações militares do Partido Nacionalista Chinês (KMT), de Chiang Kai Shek contra os libertadores comunistas de Mao Tse Tung. Washington enviou 50.000 militares, coisa leve! O Presidente Harry Truman informou que investiu na guerra sino-japonesa 4,43 biliões de dólares, na época! A guerra contra a Federação Russa por procuração passada à Ucrânia vai pelos mesmos gastos.

Entre 1946 e 1949 os EUA alinharam com o Reino Unido no combate aos patriotas gregos do Exército Democrático da Grécia que no Verão de 1944 derrotaram estrondosamente os ocupantes nazis de Hitler. Armas, dinheiro e “marines” derrotaram os democratas gregos. 

Em 1947 os EUA impuseram um governo da Democracia Cristã na Itália. O secretário de Estado George Marshal avisou a direita fascista italiana engravatada de que só tinha ajuda de Washington se impusesse no país uma política anticomunista. Foi assim até aos anos 60! A CIA distribuiu um milhão de dólares por cada partido de direita. Forjou documentos para desacreditar dirigentes comunistas. Fez propaganda via rádio a partir dos EUA (ondas curtas), financiou a publicação de livros e revistas ferozmente anticomunistas. Na época o orçamento da CIA para estas operações foi de 654 milhões de dólares.

Em 1949 os EUA deram um golpe militar na Síria colocando na Presidência da República o general Husni al-Za’im. Entre 1955 e 1960 os EUA fizeram correr rios de sangue no Laos. Guerra contra o movimento comunista Pathet Lao. No mesmo período levou a guerra à Indonésia, ao Líbano e ao Iraque. Mais soldados desconhecidos da Humanidade sem sepultura.

Em Janeiro de 1961 os EUA e seus aliados europeus esclavagistas assassinaram Patrice Lumumba. O golpe de Mobutu foi preparado, armado e financiado pela CIA a mando do Presidente Eisenhower. Em 1961 a CIA assassinou o Presidente Rafael Trujillo na República Dominicana e colocou no lugar um agente seu. Em Abril de 1961 o Presidente Kennedy mandou invadir Cuba. Os invasores foram derrotados em três dias. Washington lançou a Operação Mongoose (guerra económica contra o Povo Cubano) com o embargo que continua até hoje. Deste crime também nos toca. Somos todos cubanos.

Entre 1961 e 1964 os EUA fizeram correr rios de sangue no Brasil. Torturas, assassinatos, prisões arbitrárias. Derrubaram João Goulart que defendia uma reforma agrária profunda e a reposição das mais amplas liberdades. Derrubado! O General Castelo Branco liderou um golpe de estado por procuração passada pelo Presidente Kennedy e depois o seu “vice” Lyndon Johnson, que ascendeu à presidência.

Em 1963 o estado terrorista mais perigoso do mundo desencadeou a guerra do Vietname. Milhares de mortos. Os “Pentagon Papers” revelam: "A partir de Agosto de 1963 nós, de diferentes maneiras, autorizámos, sancionámos e encorajámos os esforços de golpe dos generais vietnamitas e oferecemos apoio total para um governo sucessor. Em Outubro, cortámos a ajuda a Diem numa rejeição directa, dando permissão aos generais. Mantivemos contato clandestino com eles durante todo o planeamento e execução do golpe, procurámos rever os seus planos operacionais e propusemos um novo governo”.

Entre 1965 e 1966 os EUA desencadearam uma das mais sangrentas invasões da sua longa história de genocidas, na República Dominicana. O Presidente Lyndon Johnson mandou invadir o país com 42.000 soldados! A Ilha foi cercada por 41 navios de guerra. Tudo com o pretexto de “impedir que a República Dominicana se tornasse comunista”. 

Nos anos 70 a orgia de sangue e morte continuou na Bolívia e Chile. Entre 1972 e 1975 Washington apoiou a Revolta Curda no Iraque. Depois arrependeu-se e entregou os revoltosos ao governo de Bagdade. Milhares de mortos. Entre 1979 e 1989 os EUA apoiaram os “Mujahideen” do Afeganistão. Mais dez anos de sangue e morte. Mais soldados desconhecidos da Humanidade.

De 1980 a 1982 Washington levou a guerra a El Salvador.  Objectivo: derrotar a Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional (FMLN). A CIA e os seus fantoches salvadorenhos assassinaram 75.000 civis suspeitos de apoiarem os guerrilheiros. De 1982 a 1989 a CIA e o Pentágono levaram a guerra à Nicarágua. A CIA distribuiu manuais ensinando a fazer explodir prédios habitados por “comunistas”, assassinar juízes que não proferissem as sentenças que o ditador Somoza ordenava, lançar operações de chantagem. Oficiais da CIA fizeram explodir o porto de Corinto afundando navios civis. Milhares de mortos. Eu estava lá. Fiz uma reportagem com os libertadores da Frente Sandinista. Em 1983, invasão de Granada, Milhares de mortos. 1989, o mesmo no Panamá.

Na década de 1990, Guerra no Iraque. Eu vi bombardear Bagdade. Os EUA e seus aliados ocidentais lançaram mísseis sobre os velhos bairros da capital iraquiana, autênticos formigueiros humanos. Imaginem o número de perdas humanas às quais chamam danos colaterais. A década de 2000 acabou com a guerra na Síria. Mas em 2014 começou a guerra na Ucrânia. Dura até hoje. 

Guerra de Angola entre 1961 e 2002. Os EUA armaram, apoiaram politicamente e financiaram a Guerra Colonial desencadeada pelo regime colonialista de Lisboa. Armaram e financiaram os invasores zairenses, sul-africanos e mercenários na II Guerra de Libertação Nacional. Armaram, financiaram e protegeram politicamente o regime racista de Pretória. Ofereceram às tropas sul-africanas mísseis terra-ar Stinger através do criminoso de guerra Jonas Savimbi. O Soldado Angolano Desconhecido da Humanidade derrotou os invasores e seus patronos.

Em 13 de Setembro de 1975 fui com o repórter Ryszard Kapuściński  (Mais Um Dia de Vida-Angola) ao Cuanza Norte porque fomos informados da captura mercenários e estavam presos em Dala Tando. Viajámos num velho Volkswagen que bebia mais do que nós os dois juntos mas não precisava de água para arrefecer nas imensas subidas dos morros. Falámos com os prisioneiros. Só dois eram militares. Os outros eram civis que se integraram na coluna das tropas zairenses e oficiais da CIA para chegarem a Luanda em segurança. Tinham família na capital. Eram fazendeiros, comerciantes e funcionários públicos.

No Lucala estavam a decorrer combates intensos contra os invasores. Fomos com uma unidade de angolanos e cubanos para a frente de combate. Entre Lucala e Samba Caju as bermas da estrada estavam juncadas de cadáveres, sobretudo mulheres e crianças. As imbambas espalhadas pelo chão. Num ponto onde estavam dezenas de civis mortos, parámos porque Kapuściński  queria fazer fotos. As mamãs levavam os seus bebés nas costas e a mesma bala que as matou também matou as crianças. Não desejo a ninguém aquela visão dantesca. De repente, ouvi um som que me parecia de criança. Corri para o local. Afinal eram macacos.

Já imaginava encontrar o meu filho, beijá-lo, apertá-lo contra o peito, protegê-lo
de todas as balas. Falso alarme. Comecei a chorar a morte do meu filho que não me chamou com um gemido. Naquela estrada entre Lucala e Samba Caju estava a marca indelével do estado terrorista mais perigoso do mundo: Sangue e Morte. Mas também O Soldado Desconhecido da Humanidade. Ali fiquei para sempre. Dava tudo para não ter visto aquela mortandade. E vi tantas no solo sagrado da Pátria! Não me peçam abraços nem perdões. 

O poeta Malaquias escreveu esta trova que vos deixo:

 

Rapariga de Setembro

Gerando filhos com flores nos olhos

Donde vem o cheiro a mortos?

Dos caminhos ensanguentados

Das nossas aldeias destroçadas

Dos nossos lares destruídos

Dos nossos berços incendiados.


Inditosa Pátria Angola minha

Donde vem o cheiro a mortos?

Dos meus filhos nosso s filhos

Dos corações torturados

Dos sonhos estrangulados

Dos esfomeados perdidos.

*Verso de Agostinho Neto

*Jornalista

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