Artur Queiroz*, Luanda
Na adolescência fui paralisado pelo medo. Não de morrer, mas viver ao lado das milícias que se formaram, para afogar em sangue a Grande Insurreição no dia 15 de Março de 1961. Vi matar seres humanos, inclusive crianças, nas ruas da cidade do Uíge. Em meados de Maio fui metido num avião Nord Atlas (barriga de jinguba) na base aérea do Negage rumo a Luanda. Mas na capital também existiam milícias que matavam negros como quem faz tiro aos pratos ou aos pombos. Medo. Terror.
O Negage do início dos anos 50 tinha uma rua principal. A meio outra rua descia para o Puri, passando pelos rios Kaua e Kanuango. Se um branco percorria a via, os negros tinham que mudar para o lado contrário. Se algum negro ousasse cruzar-se com um branco era espancado logo ali. Depois levado para o posto, chibatado e palmatoado. A Pousada do Congo tinha um bar só para brancos e outro só para negros. Era tudo assim. Um dia o senhor Ramalho abriu o Bar Benfica e aviava todos os clientes que entrassem, fossem pretos, brancos, amarelos ou azuis. Passou muito mal.
Alguns comerciantes, entre eles o mais rico da aldeia, no tempo das colheitas compravam o café e pagavam em géneros ou a dinheiro. Quando os camponeses regressavam às sanzalas, eram emboscados e mortos. As mercadorias e o dinheiro roubados. Assim se fizeram fortunas com o “café”. Eu estava lá. Medo. Terror. Os negros eram tratados com desprezo e uma violência inaudita. Apenas porque eram negros. Eu ainda não tinha idade para perceber aquela brutalidade. Mas sentia muito medo. Pedi à minha Mamã para me explicar e ela explicou: “Os negros sofrem muito. Nós temos que estar sempre ao lado de quem sofre”.
Mas como? De todos os comerciantes apenas os que viviam com negras não espancavam, roubavam ou matavam os “fregueses” até porque muitos eram família. Mas mesmo esses às vezes esqueciam-se. O meu amigo João era craque no futebol e sendo um rapaz da minha idade, não tinha ninguém. Minha Mamã deu-lhe quarto no anexo e tinha comida à descrição na cozinha do restaurante que ela geria. Tratava dos animais, inclusive um macaco que me foi oferecido pelo senhor Moka, no Bindo. Um dia o chefe dos sipaios prendeu-o. Castigado a chicote. Deu-lhe palmatoadas nas mãos e nas plantas dos pés. Ficou uma semana sem andar.
O João curou as feridas e veio a revolta do medo. Com uma pedra pontiaguda deu tantas pancadas nas costas do chefe dos sipaios que lhe furou a camisa toda. Causou lesões graves nos pulmões. Vi tudo. Não imaginava que tanta violência fosse possível. A revolta do medo é assim. Nunca descobriram quem foi o agressor porque o homem saiu bêbado do clube e nós seguimo-lo até o sipaio desligar a luz. Ficou estendido no chão, às portas da morte.
Entre a madrugada do 15 de Março de 1961 e o final desse dia milhares de angolanos atacaram as fazendas e casas dos colonos no Norte. Foi no início das férias de Março e no internato do meu colégio só ficaram os alunos dos anos de exame (segundo e quinto ano do liceu).
Ao fim da manhã chegaram ao
edifício dezenas de refugiados das aldeias e fazendas. As mesmas e os mesmos
que espancavam os negros estavam
O meu medo era ter de viver com aqueles assassinos para o resto da vida. Que chamavam terroristas aos revoltosos. Andaram anos e anos a ser vítimas de terror e quando imitaram os brancos apontaram-lhe o dedo: Terroristas!
Em 1974 os esquadrões da morte dos independentistas brancos iam para os musseques de Luanda, após o jantar, matar negros. Disparavam as armas contra quem mexesse. Mutos eram agentes da polícia, da PIDE, taxistas ou cantineiros. Um dia explodiu a revolta do medo. Os matadores foram mortos. Os revoltosos levaram tudo à frente. Eu vi. Estava lá.
Em Janeiro de 1975 tropas zairenses apresentadas como combatentes da FNLA ergueram barreiras perto da sede central (Avenida Brasil) e Casas do Povo. Prendiam e matavam. Encheram as fossas dos prédios com jovens que se opunham aos matadores. Um dia estoirou a revolta do medo. Nem um ficou para contar como foi. Eu vi. Estava lá.
Em 1992, os matadores da UNITA isolaram o Bairro Miramar com tropas armadas até aos dentes. Patrulhavam as ruas de Luanda com as famosas GMC. Prendiam, torturavam e matavam. A democracia representativa, acabada de nascer, estava por um fio. Do Huambo, Abel Chivukuvuku ameaçou que reduzia Angola a pó e balcanizava o país, se a ONU proclamasse os resultados eleitorais. Por pouco não cumpriu. Com os luandenses paralisados pelo medo, os sicários da UNITA iniciaram um golpe de estado. Era sábado, à hora do almoço. Todas as ruas de Luanda eram campos de batalha. Já lá vão 21 anos!
Os líderes do golpe fugiram quando se viram perdidos. Foram apanhados quando fugiam. A revolta do medo estoirou e cada luandense era um inimigo dos golpistas. Os “comandos” do Ben-Ben foram massacrados pelo povo. Os matadores do Salupeto Pena foram tombando na Maianga, Zona Verde e frente à Rádio Nacional. Morreram no Cassenda, no aeroporto, no Miramar. Por todo o lado. A revolta do medo é imparável. Eu vi. Estava lá.
O Agualusa, retornado savimbista, mártir da gramática, acaba de escrever a biografia do golpista Chivukuvuku. O dinheiro dos diamantes de sangue dá para tudo. Os meus parabéns a quem deu o Prémio Nacional da Cultura a um retornado ressabiado. Criado do Savimbi e seus sequazes.
Antes da Independência Nacional
acompanhei Agostinho Neto numa incursão ao Norte. Primeiro participou num
comício em Viana, Depois
Todo o mundo ficou com o coração nas mãos. Fomos até ao Dondo. Novo comício ante milhares de pessoas. Os dois comandantes das FAPLA e Manuel Pedro Pacavira imploraram a Neto que regressasse a Luanda e não ficasse a dormir na cidade. Muito menos fosse na manhã seguinte para Dala Tando. Neto recusou. E antes do almoço estava a fazer o comício na capital do Cuanza Norte. Os mercenários, oficiais da CIA, tropas zairenses, militares portugueses do Exército de Libertação de Portugal (ELP) estavam ali ao lado no Lucala. Neto desafiou-os. Nós somos milhões, vamos vencer. Gravámos a sua intervenção. Eu estava lá.
Agostinho Neto decidiu ir ao Zaire falar com o Presidente Mobutu. Eu sei que o camarada Presidente tem uma grande coragem física, mas não vai meter-se na boca do lobo? Respondeu-me: “Podemos ter inimigos cá dentro, isso resolve-se com mais ou menos dificuldade. Mas se os nossos vizinhos forem inimigos acabamos como país. Vou ao Zaire porque precisamos de vizinhos amigos”. Aprendi. Se os nossos vizinhos forem inimigos, dificilmente existimos.
Peritos de todo o mundo dizem que Israel tem serviços de segurança infalíveis, os melhores do mundo. Uma mosca que entre no país é apanhada e seguida. As informações militares são ainda melhores. A rede de informadores é inigualável. Israel é o país mais seguro do mundo!
Tenho pena que os israelitas não tivessem visto a revolta do medo como eu vi. Que não tenham aprendido a lição de Neto que eu aprendi. Ninguém está seguro se os vizinhos forem inimigos. Nem que esteja rodeado de bombas atómicas, sistemas de espionagem inteligentes, defesa antiaérea inexpugnável. Militares treinados na arte de matar em larga escala. Uma máquina buldozer rebentou com o muro da prisão que é Gaza e os vizinhos inimigos, impelidos pela revolta do medo, entraram por ali dentro e mataram.
Israel faz fronteira com o Líbano a norte. País inimigo. Telavive cultiva a inimizade. A Síria e a Jordânia estão na fronteira Leste. A Jordânia é um quintal dos EUA e ninguém se pronuncia. Mas os jordanos são inimigos de Israel. Um dia vão revelar-se. A Síria é um país inimigo que Israel se encarrega de aumentar a inimizade, bombardeando os sírios ciclicamente. O Egipto está na fronteira sudoeste. Inimigos. Qualquer dia a Mossad também coloca o Mediterrâneo na lista dos inimigos. Cercado de inimigos, Israel jamais terá paz. E vai desaparecer, inexoravelmente. Porque é mais fácil do que desaparecer o Egipto, a Síria, a Jordânia e a Palestina.
Sim a Palestina também foi obrigada a ser inimiga de Israel. E cada vez mais. Itamar Ben-Gvir, nazi, condenado num Tribunal israelita por terrorismo. É o ministro da Segurança Nacional de Israel. Yoav Gallant, ministro da Defesa. Era uma voz a favor da boa vizinhança. Condenou a manobra do governo colocar o Poder Judicial às ordens da extrema-direita sionista (racista). Que nem quer o apartheid. A extrema-direita sionista exige a expulsão de palestinos e cristãos do “Grande Israel”. Gallant anunciou que cortou a luz, a água e a comida à Faixa de Gaza. Virou um criminoso contra a Humanidade! Tudo farinha do mesmo saco.
Quem transforma os vizinhos em
imigos está condenado a morrer de morte macaca. Jamais terá paz. Não culpem o
Irão, a Mossad, as forças armadas, a polícia. Querem paz? Façam amizade com os
vizinhos. O mesmo recado vai para a Ucrânia. As armas e as balas do ocidente
alargado não transformam os vizinhos
*Jornalista
Sem comentários:
Enviar um comentário