sábado, 14 de outubro de 2023

Da ilusão de uma «Internet livre» aos caminhos da cibercensura

Existe ainda um espaço de liberdade real na internet. Onde uma diferente perspectiva do mundo pode ser e é apresentada. De uma forma não massificada, mas acessível, na teoria, por todos. É aqui que agora os poderes políticos estão a intervir para colocar – de forma mais clara – mecanismos de censura.

Há muitos, muitos anos, uma geração foi levada a acreditar que a Internet representava o acesso livre e universal de todos os cidadãos à produção, publicação e consulta de informação. A quantidade de disparates que então se escreveu dava uma excelente obra cómica.

Quem alertava para a realidade material, e para as implicações dessa realidade material, foi taxado de «Velho do Restelo», e antevia-se a sua rápida descredibilização pela vertiginosa liberdade provocada pela Internet. Como sempre, a materialidade impôs-se.
 
Quem pode, pode

O primeiro e mais básico mecanismo de controlo na Internet é exatamente o mesmo que existe em toda a sociedade burguesa, mesmo a mais democrática nas formas: o papel do capital.

Todos temos direito a ter um jornal diário, mas quantos temos o capital para poder lançar um?

Todos os jornais vivem da publicidade, quem pode obrigar uma empresa a colocar publicidade num jornal que advoga a socialização dos meios de produção? Todos temos o direito a possuir um canal de cabo, mas quantos têm o capital para o poder promover e financiar até que, eventualmente, atinja um funcionamento sustentável?

Da mesma forma, hospedar uma rede social implica milhares de milhões de dólares em servidores, uma largura de banda torrencial e a contratação de dezenas de milhares de pessoas – não exige apenas «uma boa ideia». Reunir o capital necessário é a condição sem a qual a dita «boa ideia» nunca sairá das meninges do autor. São por isso naturalmente norte-americanas as maiores redes sociais do mundo.

A normalização

A segunda forma de controlo é ela também material e resulta da primeira. Esse problema já existia nas velhas bibliotecas e foi agora ampliado um milhão de vezes: chego à biblioteca, como escolho o livro que vou ler? Ou já levo um livro na cabeça, ou indico um tema e aguardo que me forneçam uma lista, ou dirijo-me ao balcão das novidades, ou ponho-me a circular pela biblioteca até algum livro me chamar a atenção.

Há sempre um nível de intermediação. Algo colocou o livro na minha cabeça, algum critério elaborou a lista, alguém escolheu os livros em destaque. Nas actuais páginas de consultas, esse papel é feito pelo indispensável algoritmo, pois cada busca produz milhões de possibilidades de consulta. Um algoritmo que primeiro promove quem lhe paga, e depois as páginas mais vistas ou mais pontuadas, que tendem a ser aquelas cujo conhecimento está mais massificado.

E que para acelerar o processo me direciona para conteúdos que «sabe» serem do meu agrado, no que produz um novo tipo de isolamento intelectual. A tendência para a massificação de uma informação normalizada é garantida quase de uma forma matemática, ao mesmo tempo que alimenta pequenos nichos de mercado.

Um efeito similar sofrem as páginas como a Wikipédia. Desenvolvida de forma auto-regulada, onde há polémica, antagonismo insanável, ela reflecte sempre a opinião previamente massificada e tende a eliminar a opinião minoritária. Nem poderia ser de outra forma. Mas não só existem factos falsos, cujo conhecimento está massificado, como a perspectiva com que se abordam os factos é muitas vezes mais importante que os próprios factos. Na Wikipédia é a visão dominante que se normaliza.
 
Aumentar o controlo

Chegados aqui, temos já uma Internet que no plano das massas – o decisivo para a capacidade de manutenção de um sistema de dominação – está já profundamente controlada, garantindo que os conteúdos acedidos pela maioria são os produzidos pelas centrais de comunicação ao serviço das classes dominantes.

Mas há ainda um espaço de liberdade real. Onde uma diferente perspectiva do mundo pode ser e é apresentada. De uma forma não massificada, mas acessível, na teoria, por todos. É aqui que agora os poderes políticos estão a intervir para colocar – de forma mais clara – mecanismos de censura.

O primeiro deles é o acabar com a chamada neutralidade da rede. Ou seja, permitir que os distribuidores de dados atribuam a alguns conteúdos preferência de circulação, seja por razões económicas (quem paga circula, quem não paga circula mais devagar) ou outras (catalogando os fornecedores de informação por algum critério). Até agora, a neutralidade da rede tem sido defendida dos que tentam acabar com ela, mas já há formas de contornar a coisa, por exemplo através de pacotes de telecomunicações que oferecem gratuitamente apenas o acesso às redes sociais.

O segundo é estabelecer mecanismos mandatórios e comunitários de combate ao conteúdo declarado ilegal e às «fake news», à «desinformação» para usar o termo do Digital Services Act 1  , já aprovado na União Europeia em Outubro de 2022 e que se encontra em implementação faseada até 2024. Criando reguladores independentes, «sinalizadores de confiança», coordenadores nacionais, todos credíveis perante a opinião dominada, e estabelecendo o controlo sobre os controladores de acesso, tudo com o objectivo assumido de impor a todos os operadores o afastamento da opinião censurável, e de o fazer de forma centralizada para as grandes empresas multinacionais.

Aqui já falamos abertamente de uma censura extra-judicial (o recurso aos tribunais é admitido a posteriori), apesar da mesma se disfarçar de combate aos «conteúdos nocivos», ao discurso de ódio e à desinformação. Com a agravante de ser a Comissão Europeia quem vai censurar o Facebook ou o TikTok em Portugal (se estes não se auto-censurarem no sentido desejado pela CE).

Basta olhar para a guerra que hoje se trava na Ucrânia, e ver como são banidas todas as informações contrárias ao discurso pró-NATO, para se ter uma ideia dos efeitos destes mecanismos: amplificar a opinião normalizada, entregando o poder de fazer a norma às classes dominantes e seus interesses.
 
Concluindo

A situação actual é preocupante. A Internet demonstrou ser um valioso e imprescindível mecanismo de acesso ao conhecimento e à informação e simultaneamente transformou-se num monstruoso instrumento de massificação da perspectiva da classe dominante, que, não satisfeita, procura desenvolver novos mecanismos de censura da opinião que lhe é nociva.

Mas essa sempre foi a realidade em todas as sociedades. Da resistência a essas tentativas, e de uma realidade material que exige profundas transformações, nasceram todas as revoluções, apesar de toda a censura.

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1 - O Regulamento (UE) 2022/2065, aprovado quase em simultâneo com o seu parceiro «Digital Market Act» (Regulamento (UE) 2022/1925). O Digital Services Act foi aprovado no Parlamento Europeu com 539 votos a favor e 54 contra, enquanto o Digital Markets Act foi com 588 a favor e 11 votes contra. Dos deputados portugueses, só os do PCP votaram contra, tendo o BE se abstido. E já agora, a forma «americanizada» que a UE passou a adoptar para se referir às «leis federais» (o «Act») também não é inocente.

Fonte: https://www.avante.pt/pt/2599/temas/173031/Da-ilus%C3%A3o-de-uma-
%C2%ABInternet-livre%C2%BB-aos-caminhos-da-cibercensura.htm?tpl=179

Publicado em O Diário.info

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