segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Portugal-ONU: Cinismo no combate à pobreza

Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião

Assinalou-se, na passada terça-feira, o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, tema a que o JN deu espaço. O objetivo de se “acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares”, assumido pela Organização das Nações Unidas (ONU) era alcançável se para isso fosse utilizada uma parte da riqueza que se vai concentrando num ínfimo número de indivíduos, e travado o consumismo exacerbado em países que se autoclassificam de desenvolvidos.

Em Portugal há uma enorme condescendência com a pobreza e uma tensão latente entre a cultura da esmola e a cidadania social. Nenhum indivíduo é livre e cidadão pleno, se estiver dependente da vontade de outrem. A interdependência entre os seres humanos, enquanto membros da comunidade, necessita de solidariedade com sentido transformador, como afirma o Papa Francisco, não de uma solidariedade que institucionaliza dependências e normaliza a esmola.

A propósito das opções do Governo na elaboração do Orçamento do Estado, o ministro das Finanças, defendendo a tese de não aumento da despesa permanente, afirmou que é preciso haver recursos para “apoiar as famílias quando elas necessitam”. Alguma vez o Estado social teria avançado sem os estados fixarem aumento da despesa permanente?

A redução da pobreza monetária tem como variável determinante o aumento dos salários, das pensões e das prestações sociais. A melhoria de rendimentos, em particular dos mais baixos, alcança-se também com investimento permanente na educação e na formação, nos serviços públicos de qualidade, na habitação e nas mobilidades. Será que na mente daquele ministro estamos condenados a ser um povo pobre?

António Guterres, secretário-geral da ONU, enviou a todo o Mundo uma mensagem pungente sobre o drama da pobreza e da sujeição de muitas centenas de milhões de seres humanos às mais variadas formas de exploração. Alertou para o “aumento vertiginoso dos preços da energia e dos alimentos” associado a estratégias especulativas e belicistas. Denunciou a indiferença dos poderosos perante a crise climática, a crescente falta de água e de condições básicas de saúde, o escorraçar de povos para o abismo.

Disse Guterres que muitos países estão a ser “espremidos” por estas realidades e pela engrenagem de exploração chamada dívidas públicas. E considerou o sistema financeiro que domina o Mundo como “disfuncional” e “moralmente falido”.

Para termos êxito na luta pela erradicação da pobreza no plano nacional seria bom que os governantes e outros responsáveis políticos fossem bem menos seguidistas daquelas políticas. Como é possível, por exemplo, termos uma taxa de pobreza acima de 30% na Região Autónoma da Madeira e vermos governantes com longa responsabilidade a ufanarem-se pelo “desenvolvimento” conseguido com as suas políticas? Será o milagre do turismo que temos?

É preciso mobilizar a sociedade pelo progresso e desenvolvimento humanos. Um estudo recente do CoLABOR (ver site), da autoria de Frederico Cantante, evidencia que a melhoria da qualidade do emprego, dos salários e dos rendimentos de quem trabalha é imprescindível. Constata que as transferências sociais têm impacto positivo no combate à pobreza, mas têm de ser maiores e os seus focos ampliados para grupos que estão desprotegidos. É deixado o alerta de que os efeitos do contexto inflacionário que se tem vivido estará a provocar forte privação económica às pessoas e famílias de baixos rendimentos.

A erradicação da pobreza exige combate todos os dias e desmascaramento do cinismo.

Investigador e professor universitário

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