sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Angola | Do Jornal do Congo à Biografia de Neto -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Um sacerdote foragido das igrejas abriu na cidade do Uíge o Colégio Padre Américo, onde podíamos fazer o ensino secundário até à conclusão do curso geral do liceu. Dois anos depois chegou a concorrência (economia de mercado a sério) e um advogado fundou o Colégio Santa Teresinha com a mesma oferta. Uma diferença. O primeiro aceitava alunas e alunos em regime de internato. O da santinha só recebia meninas. 

Andava eu num sofrido quarto ano do liceu e o padre Antunes, director do colégio, levou-nos a uma visita de estudo ao Jornal do Congo, propriedade dos grandes fazendeiros do café, Ferreira Lima, Ricardo Gaspar, Miguel de Almeida e outros ricaços. Fomos recebidos pelo director, Montanha Pinto, na redacção. Fez uma exposição sobre a importância do único jornal do então Congo Português e depois levou-nos à oficina, onde o chefe da Redacção preparava a próxima edição. Com ar de poucos amigos ele interrompeu o seu trabalho e explicou-nos o que estava a fazer, apresentou-nos os tipógrafos, deu nome às máquinas e explicou-nos para que serviam.

O jornalista que chefiava a Redacção era Acácio Barradas. Ainda que tivesse a cara trancada, no final ousei dizer-lhe: Gostava de fazer isto! Olhou para mim, sorriu (finalmente!) e disse que se eu quisesse me ensinava. Foi uma resposta de circunstância. Mas no dia seguinte pedi ao padre Antunes que me dispensasse da sala de estudo porque queria ir ao Jornal do Congo aprender com o senhor Barradas. Autorizado. Quando meu viu, Acácio Barradas mostrou logo que não gostou da minha presença. Mas quando lhe disse que ia aprender ele voltou a sorrir e à medida que trabalhava, explicava o que estava a fazer.

Desde esse dia, sempre que tinha um “furo” no horário ou aos sábados lá ia eu atrapalhar Acácio Barradas. Um dia, com ar sério, disse que ia trabalhar para Luanda. Caiu-me o mundo em cima. Fiquei sem o professor. Desde então a minha vida começou a andar para trás. O padre Antunes foi acusado de abusar de uma aluna e o pai, que vivia no Quimbele, foi ao Uíge de carabina na mão para matar o abusador.

Só não houve mortes porque o director fugiu a tempo. A maka foi resolvida com prejuízo para o padre Antunes. Vendeu o colégio ao proprietário do Santa Teresinha e foi para Luanda. Nessas férias da Páscoa estoirou a Grande Insurreição, 15 de Março de 1961. Fui para a capital na condição de refugiado.

Desterrado, impedido de ver das alturas do Pingano, desisti dos livros. Já era mau aluno, fiquei péssimo. Seguia penosamente a via-sacra quando me lembrei do jornalista Acácio Barradas! Estava a trabalhar no Diário de Luanda. Procurei-o, abraçou-me, contei-lhe as minhas desgraças e ele muito sério disse: Se me prometeres que vais estudar, eu volto a ensinar-te. Renasci! Aquela oficina era outro mundo, nada tinha a ver com o Jornal do Congo. Eu aparecia sempre que podia. 

A passagem para o ensino superior foi um desastre. Coimbra tem muitas ladeiras e as montanhas entram-nos pelos olhos. Estão mesmo em cima do nariz. Voltei para Luanda a correr e Acácio Barradas, agora no ABC, um jornal diário vespertino, recebeu-me como aprendiz. Repórter informador. Foi assim que tudo começou. Um dia levou-me a uma tertúlia literária. Ele declamava muito bem. Convidado a intervir tirou do bolso uma folha de papel e leu um poema de sua autoria: O Meu Copo de Uísque. Uma maravilha! Era um grande poeta. Nessa altura deu-me a febre da poesia. Quando me convidou para nova tertúlia, mostrei-lhe algumas composições: Barradas achas que são bons?

Acácio Barradas olhou para mim e disse: A poesia não é péssima, má, assim-assim ou boa. É poesia ou não é. Os poetas não se medem aos palmos, são simplesment6e poetas. Ou não são. Aprendi. Nessa fase o meu mestre estava apaixonado pela Ilda, uma mulher que não cabia nos catálogos. Imprevisível. Mas muito, muto amiga. O Barradas foi convidado a integrar a equipa da “Notícia”. Fez daquela revista confusa e desorganizada o melhor que circulava em Angola. 

Um dia disse-me que ia abrir uma delegação da “Notícia” em Lisboa. Nessa altura já vivia com Edite Soeiro, a primeira grande jornalista angolana. Fiquei órfão. A sua partida causou um vazio no Jornalismo daquela época. E em mim.

Em 1977 cheguei a Lisboa e Acácio Barradas estava a trabalhar no “Diário Popular”. Levava na bagagem milhões de sonhos desfeitos e triliões de desgostos. Milionário. Como ninguém vende comida a troco dos estados de alma, tive que procurar trabalho. O Barradas pôs-me logo a trabalhar à peça. Um mês depois fui para a Redacção do “Página Um”. Todas as semanas almoçava ou jantava com o Barradas. E todas as noites convivíamos porque eu fechava as edições do jornal nas oficinas do “Popular” onde ele integrava a chefia de Redacção.

Um dia disse-me que tinha bilhetes para a ópera e íamos os dois. Vamos ver a Ópera dos Três Vinténs? Comigo é Brecht ou nada. Isso é uma coisa muito elitista! 

O Barradas chamou-me quadrado, garantiu que a ópera é música popular como não há outra. Ensinou-me a ouvir e ver o que não sabia. E fomos ver a Ópera Così Fan Tutte, de Mozart. Fiquei maravilhado. E rendido. É mesmo música popular com enredo! Como a Saudosa Maloca do Catulo da Paixão Cearense. Vieram os homens demolir a nossa cubata. E nós vendo a demolição. Cada tábua que caía doía no coração. As coisas que o Barradas me ensinou!

Redacção do Jornal de Angola. Estou afogado em trabalho e recebo um telefonema: Kitó preciso de ti. Há um projecto interessante que está encalhado há dois anos. Trata-se de uma biografia de Agostinho Neto. Já falei com o Moutinho Pereira e ele alinha. Tu queres alinhar também? Assim trabalhei com ele nessa obra chamada “Agostinho Neto uma Vida sem Tréguas”. A maior honra de toda a minha vida profissional. Também devo isso ao Barradas.

De passagem por Lisboa liguei para o meu mestre e amigo. Fomos almoçar na praça da alimentação do centro comercial Amoreiras. Estava feliz. Disse-me que seu filho Carlos São Vicente tinha triunfado no mundo financeiro, por mérito próprio. Nunca o vi tão orgulhoso. Estamos a almoçar num centro comercial porquê, Barradas?

Aqui não há criados. Vamos nós servir-nos. Comemos o que queremos e a quantidade que desejamos. Isto só fecha quando se fecham as portas do centro comercial. Falamos à vontade, sem pressa. 

A parte que mais gostei foi não haver ninguém ganhando um salário miserável para ser criada ou criado.

O filho dos meus amigos Ilda e Barradas, Carlos São Vicente, foi expropriado de todos os seus bens e está preso em Viana. Alguém decidiu que o seu património na banca, seguros, imobiliário, mais as redes hoteleiras fazia jeito aos que enriquecem com o combate à corrupção. Arranjaram uns magistrados (de todas as instâncias) que venderam a alma ao diabo e atiraram com um inocente para a prisão.

Um dia destes mandou-me uma mensagem que dizia: “Tens que escrever as tuas memórias”. O que vivi até agora nada tem de interessante. E quero passar pela vida sem ninguém dar por isso. Mas hoje vou responder ao filho do meu mestre Barradas e da minha amiga Ilda: 

Vamos escrever a história da tua vida, a quatro mãos, duas tuas e duas minhas. Vem depressa, Carlos. Temos muito que escrever!

Como diria Neruda, o teu povo, o teu povo desprezado entre o monte e o rio, não quer lutar sozinho. Te está esperando, amigo!

* Jornalista

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