terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Angola | Limpeza do Lodo e da Poeira -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Dia 6 de Janeiro de 2013. Estava no meu posto de trabalho e fui incumbido de uma missão: O Presidente José Eduardo exige que o Povo Angolano saiba tudo sobre a Batalha do Cuito Cuanavale. Tu vais fazer esse trabalho. Respondi que tinha no Jornal de Angola excelentes repórteres para isso. Tens de ser tu! Para que não haja perseguições políticas ou mesmo confisco de activos, não revelo os nomes de quem montou toda a operação. E dos jornalistas que trabalharam comigo. Só vou nomear Paulino Damião “50” porque já não podem fazer-lhe mal. Partiu desta vida, descontente. O meu Herói do Jornalismo Angolano.

O trabalho jornalístico começou em Janeiro de 2013, faz agora 11 anos sob o título genérico Os Meses que Mudaram África e o Mundo. Paulino Damião, reformado, aceitou o meu desafio de irmos sacudir a poeira, tirar o lodo e capinar à volta dos factos que levaram à derrocada do regime de apartheid da África do Sul, no Triângulo do Tumpo. Estudei, consultei, li, ouvi e partimos num enorme avião Ilyushin carregado de tambores com combustível e alguns civis, sobretudo mulheres. Disse ao repórter “50”: Se isto cai, o padre Apolónio nem pode rezar pela nossa alma porque ela desaparece em milhões de pedaços! Como se vê pelo exemplo anexo, a aeronave não caiu.

No Cuito Cuanavale fomos recebidos pelo General Fernando Amândio Mateus (Nando Cuito) o comandante das forças na linha da frente durante a Batalha do Cuito Cuanavale. O General Ngueto nessa fase estava ao comando em Menongue. Pela sua mão descobrimos o “Triângulo do Tumpo” muito citado pelos sul-africanos. É uma imensa chana após a aldeia de Samaria. Nesta altura estava muito alagada mas ia piorar em Fevereiro e Março. Os rios Dala, Cuito e Cuanavale despejam água até à base das colinas.

O General Nando Cuito apontou para a colina em frente a nós e disse: “Ali o terreno está cheio de minas convencionais e inventadas pelo Coronel Jorge (hoje é Brigadeiro). Estão lá vários tanques Oliphant dos sul-africanos do Regimento de Cavalaria Pretória. Vocês não podem ir lá. Estamos a desminar”. 

O Repórter “50” olhou para mim com ar implorante. Dizia-me com os olhos, “vamos lá”. E eu disse ao General Nando: Viemos aqui para contar tudo sobre a Batalha do Cuito Cuanavale. Temos que ir à colina fotografar os tanques dos sul-africanos!

Os oficiais da desminagem prontificaram-se a acompanhar-nos mas tínhamos de pôr os pés onde eles punham. O General Nando cedeu: Sendo assim vou também. Se morrermos não vos perdoo! O Repórter “50” ficou com os olhos a brilhar.

No dia seguinte, manhã cedo, partimos rumo à colina que é uma parede verde da Catedral da Liberdade, no Triângulo do Tumpo. Marchámos em passo de camaleão durante meia hora até atingirmos uma pequena clareira. Lá estava um tanque, intacto, coberto de capim e mato. Limpámos tudo e o Repórter “50” fotografou, até o pormenor do emblema da unidade militar a que pertencia. Depois nós posámos junto ao mastodonte de ferro, última maravilha da indústria bélica alemã “federal”. Perdi essas fotos às duas da manhã do dia 26 de Dezembro. Mas continuo a aproveitar até ao tutano mais um dia de vida.

Na colina ainda destapámos do mato e do capim mais dois “Oliphant” e um cemitério onde os invasores enterraram superficialmente os seus mortos mais os da UNITA. As fardas ainda estavam intactas. E os cabelos loiros.

A minha vida de repórter só foi possível com almas gémeas da imagem. Trabalhei com alguns dos melhores fotojornalistas do mundo. Obrigado à vida que tanto me deu. Fiz reportagens com Eduardo Baião, Eduardo Gajeiro, Henrique Moreira, Américo Diegues, Toninho Pereira de Sousa, Marco, Velho Timóteo e Timóteo Filho, João Oliveira (João Capitão), Gaspar de Jesus, Zurita, Muñoa, Bernardo, e aquela equipa fabulosa do Jornal de Angola, chefiada pelo Chico Bernardo e o Rogério Tuti. 

O Repórter “50” foi o meu companheiro na limpeza da poeira e do lodo que cobriam a Batalha do Cuito Cuanavale. Numa das viagens ao coração do acontecimento pudemos fazer fotos em locais que já estavam desminados e existia material de guerra abandonado pelos invasores estrangeiros. Escrevi dois textos, uma reportagem e uma crónica. Imprimi o material e dei-o ao meu companheiro. E ele remetido ao silêncio. Ao fim da tarde veio entregar-me as fotos. E depois fomos atraídos para um abraço comovido.

A nossa ligação era mais do que profissional. Estávamos unidos pelo amor à Pátria Angolana. O nosso trabalho serviu para que o 23 de Março fosse considerado o Dia da Libertação da África Austral. Na próxima festa (ainda vai acontecer?) por favor, homenageiem o Repórter “50”. Só eu sei quanto ele merece.

No mês de Março de 2013 publiquei este texto sem poeira, sem lodo e capinado:

No dia 22 de Março de 1988, a 82ª Brigada dos sul-africanos avançou para o Triângulo do Tumpo. A infantaria da UNITA ia atrás. Abílio Camalata Numa recuou 30 quilómetros. Às 22h45, o coronel Fouché moveu o comando para o planalto norte do rio Chambinga e chegou à uma e meia da manhã de 23 de Março. Estavam à sua espera os generais Liebenberg e Meyer e os coronéis Deon Ferreira e Neil. Às quatro da manhã do dia 23 de Março de 1988 a força de ataque atingiu a “área avançada de concentração”.

As FAPLA responderam ao ataque do inimigo às sete da manhã daquele dia 23 de Março de 1988, a norte da nascente do rio Dala. Entraram em acção os artilheiros do Regimento da Universidade de Potchefstroom, que bombardearam o Triângulo do Tumpo. Às oito da manhã, as FAPLA responderam com o flagelamento à força principal de ataque dos invasores. Às 8h35 um tanque “Oliphant”, no flanco direito da linha de ataque, accionou uma mina. Ficou fora de combate. Entre as 11h30 e as 11h50 os canhões “G5” disparavam contra o posto de comando avançado das FAPLA, em Nancova. 

Um aguaceiro intenso obrigou a parar o fogo. O comandante Louw limpou com um “plofadder” um campo de minas. Avançou em direcção ao Triângulo do Tumpo com dois esquadrões de tanques que levavam à cabeça um draga-minas. As FAPLA reagiram em força e às 12h45 Louw retirou-se. O 5º batalhão regular da UNITA sofreu severas baixas. Louw tentou avançar de novo, mas foi travado por uma barragem de fogo das FAPLA. A infantaria da UNITA foi desbaratada. Às 13h46, os “Oliphant” entraram num campo de minas. Dois ficaram destruídos. O comandante Louw tentou atacar de novo, mas mais uma vez foi travado. Às 13h48 Louw informou o comando que os tanques estavam sem combustível. Andaram às voltas para evitar os campos de minas o que levou a um gasto anormal de combustível.

O excelente trabalho realizado pelos engenheiros das FAPLA na criação de obstáculos contra a infantaria mecanizada e a técnica blindada do inimigo atingiu o seu ponto culminante: Os super tanques “Oliphant” estavam confinados aos campos de minas, consumindo combustível, enquanto procuravam uma saída, no labirinto, totalmente à mercê da artilharia e da aviação angolana. O comandante  Louw viu vários “Oliphant” atingidos. Deu ordens para que todos fossem retirados. Mas apesar dos esforços, três foram abandonados (esses nós fotografámos, sem capim nem mato). 

As FAPLA tinham ali os seus troféus e a prova de que destroçaram o regime de apartheid. O general Meyer enviou uma mensagem ordenando que o Coronel Fouché se assegurasse que os três “Oliphant” abandonados eram destruídos. Mas isto já não era possível. Os invasores, derrotados, retiravam para Mavinga, vergados ao peso da derrota. Até final de Março, todas as unidades invasoras abandonaram Angola.

O regime de apartheid ficou enterrado no Triângulo do Tumpo. A Humanidade deve aos angolanos a libertação de Mandela, a instauração da democracia na África do Sul e a Independência da Namíbia. Março de 1988 foi o culminar do ano que mudou a face do continente africano. 

O Repórter “50”, vários jovens repórteres do Jornal de Angola e eu contámos como foram os meses que mudaram África e o Mundo. Entrámos em acção em Janeiro de 2013. Por amor à Pátria. O pagamento foi o Dia da Libertação da África Austral. Nunca repórteres foram tão bem pagos!

* Jornalista

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