quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Angola | Vamos Falar de Censura – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A censura tem muitas formas e feitios. No antigamente da vida os censores eram coronéis armados de lápis azuis. Em Angola a comissão censória funcionava no Palácio da Cidade Alta e era dirigida pelo secretário-geral do Governo Geral. Coisa de luxo. Hoje censurar é um bombardeamento informativo., não é amputar, cortar, desfigurar.

As mãos autorizadas do Big Brother fazem circular milhares de milhões de fragmentos de informação e os consumidores não são capazes de diferenciar a propaganda da notícia, a verdade dos factos da falsificação. Assim aceitam, sem limites, a desvalorização do trabalho jornalístico. As grandes autoestradas da comunicação despejam grandes quantidades de materiais que depois se transformam em rochedos, onde água limpa da notícia bate e se desfaz em espuma, para que ninguém dê por ela.

A crónica jornalística tem uma estrutura muito frágil mas ao mesmo tempo terrivelmente eficaz. Cada palavra, cada ponto, tem de estar no seu sítio caso contrário tudo se desmorona. Cada cronista tem a sua forma de construir esse edifício. Constrói o seu estilo. Eu gosto de misturar temas aparentemente díspares mas que no fundo são da mesma família ou estão ligados nem que seja pelo rabo.

Ontem falei do Hino Nacional criado por Tazinha de Mascarenhas, Eduardo Nascimento e Jorge Macedo. Mas também falei da destruição de dois jornais centenários em Portugal, um diário desportivo e uma Rádio (TSF). Porque está tudo ligado. Nos dois casos houve censura pura e dura.  E os dois ainda me doem.

Em 1975, a música popular urbana estava no auge. Muitos artistas criaram temas de apoio ao MPLA na sua luta pela Independência Nacional, em circunstâncias muito difíceis. Eram os mais populares. Mas não tinham conhecimentos musicais para criarem o Hino Nacional. Aliás António Jacinto dizia que era preciso evitar cair no esquema “aiué mamã” e o facilitismo porque um Hino Nacional é para sempre e não para marcar apenas um período histórico. Hermínio Escórcio e Manuel Pedro Pacavira falaram com o poeta e musicólogo Jorge Macedo para ele assumir essa tarefa.

A encomenda foi entregue a quem sabia. Jorge Macedo indicou os nomes da compositora Tazinha de Mascarenhas e Eduardo Nascimento, o músico mais internacional que Angola tinha na época, a par do Duo Ouro Negro, de Milo Vitória Pereira e Raúl Indipo. Os três nomes foram aprovados pelo Presidente Agostinho Neto e por António Jacinto. Começaram imediatamente os trabalhos.

Tazinha de Mascarenhas é compositora. Domina a linguagem musical. Dava concertos de música clássica desde o início dos anos 60. Era seguramente a pessoa mais qualificada em Angola no domínio da arte musical. Tal como as irmãs. Como na época ninguém vivia exclusivamente da arte, ela era funcionária pública. Seu pai, Pereira do Nascimento, era uma figura de referência. Presidia à Liga Nacional Africana. Tinha grande influência política. Queria a Independência Nacional mas sem guerra. O que era impossível mas ele acreditou sempre numa via pacífica.

Eduardo Nascimento (Ed) criou nos anos 60 o conjunto musical Os Rocks. A primeira versão incluía os manos Espadinha, Elmer Pessoa e o baterista Tó Caseiro. Foi aparecer e vencer. Em pouco tempo conquistaram um lugar cimeiro no panorama artístico luandense e angolano. Tiveram o cuidado de arranjar um agente artístico, José Manuel, ligado à empresa Diogo & Companhia, das mais potentes do Norte de Angola com sede em Dala Tando. Era primo do crítico de Jazz Raúl Bernardo. Tinham sempre grandes contratos garantidos. Isso gerou invejas e ressentimentos.

Eduardo Nascimento percebeu que o projecto era muito pequeno para as suas ambições. E iniciou uma carreira a solo em Portugal. Aquele vozeirão único, sideral, conquistou tudo e todos. De tal maneira que representou a RTP no Festival Eurovisão da Canção, em 1967. Alto nível. Em 1969 abandonou a carreira artística e foi trabalhar para a TAP.

Jorge Macedo era, na época, um dos maiores intelectuais angolanos. Poeta de eleição e musicólogo. Mas a sua faceta mais militante era a religiosa (Igreja Católica). Fomos amigos e nunca desistiu de me converter. Falhou. Era o meu crítico mais feroz. Achava que a minha propensão para a marginalidade me desvalorizava. 

Nunca consegui convencê-lo dos meus argumentos. Um branco, nem que se pinte de negro, será sempre conotado com o colonialismo. Para os colonialistas, se esse branco defender a Independência de Angola, será sempre um alvo a prender ou abater. Desprezado e acossado dos dois lados, só lhe resta a resistência. E nada melhor do que viver na margem de todos os sistemas. Aprendi muito com Jorge Macedo. Ele queria que eu fosse tolerante mas nessa parte também falhou. Nem cristão nem bom rapaz.

O Hino Nacional ficou pronto. Jorge Macedo convocou dezenas de jovens do coro da sua Igreja para ser gravada a versão oficial que ia passar na Emissora Oficial de Angola (RNA). Ainda não tínhamos emissões regulares da TPA. A gravação foi feita no estúdio grande da rádio pelos técnicos Artur Arriscado e Humberto Jorge. Artur Arriscado, meu companheiro dos programas radiofónicos A Voz Livre do Povo e Contacto Popular ofereceu-me uma fita com a gravação.

Uma equipa de reportagem do “Diário de Luanda” constituída, por João Serra e o fotojornalista Bernardo, fez a cobertura do histórico acontecimento. Publicámos o trabalho na primeira página da edição do dia 9 de Novembro de 1975.     

Não pode! Esses do hino colaboraram com o colonialismo! São colonialistas!

Tinham alguma razão. Quem deixou tudo para se juntar à Luta Armada de Libertação Nacional cortou radicalmente com os colonialistas e o colonialismo. Mas quem não tomou essa atitude, de alguma forma sim, colaborou. Se todos tivéssemos acompanhado os revolucionários do 4 de Fevereiro, no dia 5 Angoa era independente. Se todos tivéssemos acompanhado a Grande Insurreição do 15 de Março, no dia seguinte estava conquistada a independência. Se todos fossemos para a guerrilha, a guerra colonial nem um mês durava. 

Eduardo Nascimento era um nacionalista. Mas evidentemente que o regime colonialista se aproveitou dele. Tazinha de Mascarenhas era funcionária pública e vivia para a música. Claro que o colonialismo não teve que se preocupar com ela. Jorge Macedo era um nacionalista. Funcionário público vivia para a investigação musical e a poesia. Se isso é colaborar com o colonialismo, sim, colaboraram. Como Agostinho Neto colaborou quando tomou posse como delegado de Saúde em Cabo Verde. Vejam a coisa por este lado: Dentro do sistema também se podia lutar contra o colonialismo e ganhar!

Rui Mingas foi professor do ensino secundário em Almada, até ao 25 de Abril de 1974. Se isso é colaborar com o colonialismo, sim, colaborou. 

Manuel Rui Monteiro foi funcionário do governo português durante o regime fascista. Integrou o Exército Português. Foi mobilizado para a guerra colonial em Moçambique como alferes miliciano. Outros seus contemporâneos desertaram quando foram mobilizados e juntaram-se à guerrilha. Alguns nem sequer esperaram pelo serviço militar obrigatório e partiram para o exílio, juntando-se depois ao MPLA. Jorge Macedo e Eduardo Nascimento não fizeram serviço militar, por isso “colaboraram” menos do que Manuel Rui.

Os autores do hino chamados à pressa tinham mais ou menos o mesmo currículo “colonialista” de Tazinha Mascarenhas, Ed Nascimento e Jorge Macedo. Logo, essa não foi, seguramente, a causa de atirarem para o lixo o hino (primeiro) que criaram e gravaram em primeira mão.

Sigam a pista dos Comités Amílcar Cabral. Os futuros golpistas do 27 de Maio. Os que querem apagar o passado porque odeiam que lhes lembrem o tempo em que eram pobres. Sigam a pista do etnonacionalismo. Sigam a pista do oportunismo desenfreado que existia na época. Sigam a inveja e o ressentimento. E sobretudo sigam a pista da censura. 

Sim, Tazinha, Ed Nascimento e Jorge Macedo foram miseravelmente censurados por gente que se “colou” ao MPLA. Os mesmos que queriam impor a censura aos noticiários da Emissora Oficial de Angola RNA) e que os jornalistas recusaram corajosamente. Esse episódio censório levou-me a pedir a demissão do cargo de chefe de redacção da Rádio. Não podia trabalhar sob tutela do Ministério da Informação que queria impor a censura prévia, pouco mais de um ano depois da Revolução dos Cravos e dez meses antes da Independência. 

O músico Carlos Lamartine arranjou um coro à pressa, com a colaboração da JMPLA, e o hino feito à pressão foi gravado em cima do joelho. A apetência para a censura nem sequer poupou o Hino Nacional. 

Deste naufrágio salvou-se Tazinha de Mascarenhas, Eduardo Nascimento e Jorge Macedo que aceitaram a censura em silêncio, numa altura em que se tivessem denunciado publicamente este episódio indigno, isso traria graves consequências. 

Tazinha vivia no popular Bairro dos Coqueiros, Ed Nascimento no Miramar. Um negro a viver numa zona chique da capital! Fogo em cima dele. Jorge Macedo era um mestre. Como é possível um negro chegar tão alto sem o escadote do MPLA? Mas chegou e por mérito próprio. 

* Jornalista

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