quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Quando os pobres votam na direita

Nuno Ramos de Almeida | Diário de Notícias | opinião

O historiador Thomas Frank tem, na edição dos seus livros em francês, duas obras traduzidas com títulos provocadores. Uma sobre a razão por que os pobres votariam na direita e a outra sobre os motivos por que os ricos passaram a votar à esquerda. Nestes textos, muito baseados na situação dos EUA, relata-se o abandono das classes populares por parte dos partidos da esquerda moderada em troca de agendas menos ligadas aos direitos sociais e mais conectadas com os direitos individuais e as múltiplas agendas identitárias.

Num estudo coordenado por Thomas Piketty sobre a relação entre as desigualdades sociais e os resultados eleitorais em 50 países “democráticos” (Clivagens Políticas e Desigualdades Sociais) verifica-se que há em muitos países desenvolvidos uma evolução: antigamente, as classes trabalhadoras tendiam a votar à esquerda e os patrões, ricos e licenciados à direita. Hoje, verifica-se que os licenciados votam à esquerda e que parte das classes trabalhadoras já não vota, ou não o faz à esquerda. Isso coincidiria com várias circunstâncias: o abandono por parte da esquerda do terreno popular e da defesa das classes trabalhadoras e a passagem de reivindicações “materiais” para “pós-materiais”, enquanto se multiplicam novas lutas de caráter identitário que tornam invisível o conflito de classes. Como alguém dizia, “a classe social não foi morta, ela foi enterrada viva”. 

Obviamente que é necessário fazer uma política que tenha em conta as identidades, mas isso não significa reduzir a política a uma soma de identidades cada vez mais próxima da individualidade. 

Este processo de individualização e perda de referentes coletivos tem a ver com uma alteração da realidade económica e social: a desindustrialização do mundo desenvolvido, a criação de empregos por plataformas, em que dezenas de milhares de pessoas, a fazer a mesma coisa, parecem todas isoladas, em que todos têm laços cada vez menos estáveis, em que há uma certa liquidificação da sociedade. 

Mas tudo isto também foi fruto de uma vitória ideológica. Num célebre artigo em 1939, Friedrich Hayek defende que se deveria entregar a condução da política monetária a uma organização supranacional. Propõe a criação de instituições supranacionais como forma de, na prática, retirar ao controlo democrático o funcionamento da economia. 

Na altura, esta vontade era amplamente minoritária mesmo no seio da social-democracia e da direita moderada, em que o pensamento keynesiano era dominante. Mas até aos anos 70 os pensadores neoliberais e as classes proprietárias, interessadas em reduzir a força dos sindicatos e dos trabalhadores na distribuição do rendimento, construíram uma nova hegemonia. Como afirmava um dos seus defensores mais conhecidos, Milton Friedman, fizeram com que o politicamente impossível se tornasse o politicamente inevitável.

Este processo de dissociação total entre economia e democracia, através da globalização e da integração europeia, da democracia e da economia, provocou, desde o final dos anos 70, um lento apodrecer das instituições democráticas e uma ideia de impotência da democracia para resolver os problemas das pessoas. Independentemente de em quem votem, as decisões económicas são sempre as mesmas e servem, preferencialmente, determinadas elites políticas e económicas. 

Perante este vazio, numa sociedade cada vez mais deslaçada em que impera o isolamento e a insegurança em relação ao futuro - as novas gerações vão viver pior do que as anteriores -, o populismo de extrema-direita veio tentar ocupar o vazio através de um redesenhar do território da política. 

De um lado, teríamos as supostas elites, todas confundidas e misturadas, políticos e intelectuais, os imigrantes e as pessoas que não são “da nossa cultura e raça”, e, do outro lado, o povo de bem.

Este mapa da política deixa de lado, naturalmente, as diferenças entre patrões e trabalhadores. Nega a existência de uma luta de classes e substitui-a por uma suposta guerra de civilizações. Aquele que trabalha e é roubado por uma economia que enriquece bilionários não olha para eles e concentra o seu ódio no imigrante que trabalha por metade do preço. Como se essas situações não fossem ditadas pelo capitalismo financeiro globalizado. André Ventura faz esse movimento de prestidigitação, retirando da vista os empresários milionários que dão dinheiro ao Chega, fazendo ainda um ajuste de contas histórico. Quer fazer-nos crer que a culpa da nossa situação de miséria está na democracia, e não na economia. Ao mesmo tempo, faz uma lavagem do fascismo e do colonialismo, como se eles não tivessem sido uma das razões, a par da política neoliberal, do nosso atraso e da falta de condições de vida em que se encontra a maioria das pessoas que vivem em Portugal. Para dizer claramente, não foi quem combateu a ditadura e o colonialismo que traiu as pessoas que vivem em Portugal, foi quem defende esse regime fascista que tem as culpas do sofrimento, miséria e falta de liberdade em que viveram gerações. 

O Chega é o braço armado dos ricos, que lhe pagam, a fingir que quer apoiar quem trabalha. Tudo isso disfarçado com discursos sobre segurança, ideologia de género, falsa teoria da substituição dos portugueses pelos imigrantes e o alegado combate à corrupção, que deixaria os maiores corruptos a salvo.

Para impedir o crescimento da extrema-direita é preciso sair de um conflito em que a extrema-direita fala às entranhas das pessoas, enquanto do outro lado só há uma esquerda moderada que fala com o Excel. 

O drama é que populismos e fundamentalismos têm sido contestados por bons motivos mas com más respostas. Como escrevia William Butler Yeats n’O Segundo Advento, “aos melhores falta convicção e aos piores sobeja apaixonada intensidade”. Talvez fosse melhor desenterrar a luta de classes e reivindicar a parte intensa de um conflito social com coordenadas verdadeiras.

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