sábado, 10 de fevereiro de 2024

Portugal | 2024, ano de viragem?

2024 poderá ser um ano de viragem, ou não. Resta à esquerda ter a inteligência de saber lidar com as expectativas de milhões de portugueses e portuguesas que querem comemorar os 50 anos do 25 de Abril com esperança.

Adelino Fortunato* ! Esquerda | opinião

2024 irá ser um ano recheado de atos eleitorais para diferentes órgãos de poder político em dezenas de países, fazendo dele o ano eleitoral mais global da história. O ano que acaba de começar poderá confirmar tendências de mudança na opinião pública mundial que se veem revelando no período mais recente e que apontam para uma adesão crescente a ideias conservadoras e a uma ascensão de forças políticas de extrema-direita. Entre outras coisas, nomeadamente o enfraquecimento ideológico de toda a esquerda, as fraturas políticas e sociais introduzidas nas sociedades contemporâneas pelas políticas neoliberais, ao fim de quatro décadas de aplicação, criaram insatisfação e desespero em muitas camadas da população mundial e abriram espaço à crise de representação política hoje dominante.

A tradicional preponderância dos chamados partidos do centro, que no pós-guerra representavam uma maioria esmagadora de eleitores, está a ser corroída e desafiada pela emergência de polos de protesto à sua direita com capacidade para marcar a agenda política, mesmo quando não integram coligações de governo, como acontece nos Países Baixos, em França, na Alemanha ou na Áustria. Noutros casos, como em Itália, Eslováquia e Hungria a extrema-direita chegou mesmo ao poder e vai desenvolvendo o seu projeto de desvalorização das liberdades democráticas associadas aos sistemas políticos desses países.

Não haverá, sob a influência destes partidos, uma revolução fascista ao estilo do que aconteceu nos anos 30 do século passado. As sociedades contemporâneas são muito diferentes, não há desemprego massivo, nem qualquer ameaça de tomada de poder pelas classes mais exploradas ou oprimidas em nome do socialismo, como aconteceu, de facto, na época que se seguiu à revolução russa de 1917. Em vez disso, como diz o jornalista do Expresso Daniel Oliveira, trata-se de fazer “uma reforma contra a democracia”. Isto é, de fazer ajustamentos incrementais regressivos nos atuais regimes políticos, conservando a sua fachada “democrática”, mas reduzindo substancialmente a sua legitimidade.

Tudo isto vai estar em jogo nos próximos confrontos eleitorais. Desde logo nas eleições de junho para o Parlamento Europeu, a extrema-direita poderá vir a transformar-se numa das principais famílias políticas e a ter uma influência significativa na arquitetura e nas decisões da União Europeia. É uma espécie de ironia do destino, tendo em conta os propósitos iniciais deste grande espaço económico e político. Mas, e sobretudo, nas eleições presidenciais americanas de novembro, com a hipótese de Trump vencer. Teríamos de novo uma tentativa de subversão da separação de poderes, de enfraquecimento da autonomia do poder judicial, de controlo dos meios de comunicação e a instrumentalização descarada do aparelho de Estado para servir interesses privados e pessoais. E pior que isso, certamente.

Em Portugal, em plena pré-campanha para as legislativas de 10 de março, tudo isto está na ordem do dia. O derrube da maioria existente no Parlamento pela ação conjugada do Ministério Público e do Presidente da República, tirando partido dos erros do governo de António Costa, não é um bom sinal. Recentemente, cada novo ato eleitoral trás consigo uma dose adicional de representantes da extrema-direita e desta vez não será exceção. Mas, mais que isso, as sondagens dão conta que a direita no seu conjunto, incluindo a Aliança Democrática (PSD+CDS+PPM), a Iniciativa Liberal e o Chega alcançarão mais representação parlamentar que a esquerda somada (PS+Bloco de Esquerda+CDU+Livre+PAN).

Estes dados revelam uma mudança do ciclo político, que não é de agora, e que a esquerda não foi capaz de antecipar. A degradação da situação internacional, a judicialização da política, a deterioração da situação institucional, a perda de representação dos partidos do centro político (PS e PSD), a emergência em força da extrema-direita, tudo isto aumentou a probabilidade de a direita chegar ao poder apoiada pelo Chega. Uma mudança de ciclo político exige um ajustamento na linha política, que não se pode resumir à denúncia dos erros da designada “maioria absoluta”, ou ao combate à corrupção. Era preciso reformular a mensagem política.

A situação política que vivemos é delicada e complexa. À esquerda, a grande preocupação concentra-se no objetivo de evitar um governo de direita apoiado pela extrema-direita, hipótese envolta em grande incerteza. É verdade que há sinais de que toda a esquerda está disponível para contribuir para essa solução. Mas ela poderá não ser viável se a AD se entender com o Chega. Oito anos fora do poder é um tónico muito forte para alimentar entendimentos a este nível. Há um cansaço e uma degradação generalizada que os pode ajudar.

Porém, poderá também gerar-se um impasse institucional se Montenegro se mantiver fiel à promessa de recusar entendimentos com o Chega e, ao mesmo tempo, inviabilizar um governo da esquerda. Nesse caso, nova antecipação das eleições para clarificar a situação poderá estar na ordem do dia. Marcelo, cuja sede de protagonismo está mais que demonstrada, encontrará neste terreno movediço um palco privilegiado para manobras e todo o tipo de operações que valorizem a sua margem de iniciativa.

Mas, para além de tudo isto, se PS for o partido mais votado e a direita tiver maioria no Parlamento, as fragilidades de Montenegro poderão ser suficientemente evidentes para abrirem caminho a uma progressão do Chega que retire ao PSD a hegemonia à direita. As sondagens mais recentes apontam para uma aproximação entre ambos. Teríamos sempre um debate extremamente polarizado, em torno dos temas de que a extrema-direita gosta, fazendo inclinar todo o sistema político para a direita.

Enfim, 2024 poderá ser um ano de viragem, ou não. Resta à esquerda ter a inteligência de saber lidar com as expectativas de milhões de portugueses e portuguesas que querem comemorar os 50 anos do 25 de Abril com esperança.

* Artigo publicado em “Raio de Luz” em janeiro de 2024

Adelino Fortunato - Economista e professor universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda.

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