domingo, 17 de março de 2024

Angola | A Grande Insurreição Popular -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Cidade do Uíge, Janeiro de 1961. O Colégio Padre Américo, onde estudava e vivia no internato, entrou em graves convulsões e fechou. Os alunos migraram para o Colégio Santa Teresinha. Na prática só mudaram alguns professores, o local onde dormíamos e tomávamos as refeições. A nova direcção decidiu que os alunos dos anos de exame no ensino liceal, segundo e quinto, não iam gozar as férias da Páscoa para recuperarem de semanas seguidas sem aulas. No primeiro dia de “recuperação”, ao fim da manhã, um mensageiro entrou na sala de estudo e berrou: Os pretos mataram os brancos todos no Quitexe!

Os alunos externos regressaram às suas casas e nós fomos para o internato, razoavelmente assustados. Fui para a camarata ler a “selecta literária” que já trazia, no final, poemas de José Régio. Todos tiveram pai. Todos tiveram mãe. E eu que não princípio nem acabo nasci do amor existente entre Deus e o Diabo. Cito de memória, pode não ser bem assim. 

O Beto Martins, aluno externo e mestiço, vivia com os padrinhos. Dada a confusão gerada, ninguém fez o almoço para os alunos internos. Fui a casa do meu amigo dar ao dente. Encontrei-o em estado de choque. Já sabia muito do que tinha acontecido. As acções armadas no Quitexe afinal repetiram-se por todo o distrito do Uíge. Desde o Vale do Loge a Maquela do Zombo. E morreu muita gente sobretudo nas pequenas vilas e nas fazendas. Naquele 15 de Março de 1961 estoirou a Grande Insurreição Popular contra o colonialismo.

De regresso ao internato fui surpreendido com um verdadeiro pandemónio. Dezenas de mulheres e crianças, fugidas das pequenas vilas do então distrito do Uíge, ocuparam o internato que estava quase vazio. Os alunos do ensino primário e do secundário sem exames tinham partido de férias. As escadas (o prédio tinha dois andares) estavam ocupadas pelos refugiados e as suas imbambas. As mulheres choravam e as crianças imitavam as mães. Uma tragédia nunca vista mas há muito anunciada.

No anexo do prédio vivia o vigilante que também era o nosso sapateiro. Fui ter com ele. Estava em pânico e com toda a razão. Se antes a vida de um negro não valia nada, depois da insurreição valia ainda menos. O racismo e o ódio saíram à rua de mãos dadas. Disse-me que à noite ia fugir para a sua aldeia. Pedi-lhe para esperar até sabermos o que aconteceu com mais pormenores. Garanti-lhe o meu apoio. Éramos amigos e tínhamos uma combina. Ao sábado à noite deixava-me fugir do internato antigo, para ir às farras do Candombe. 

O vigilante acalmou-se. Mas nessa noite tentou fugir. Foi morto a tiro pelas milícias, mesmo em frente ao prédio do internato. Levava uma pequena trouxa. Foi a primeira vez que vi um amigo morto, ali estendido no chão e com manchas de sangue na roupa. 

O tiroteio em frente ao internato regressou ao amanhecer. Fui à varanda e vi as milícias disparando contra um grupo grande de mulheres, jovens e crianças que saíam da cidade. Todos mortos no terreno baldio em frente ao prédio. Ao hospital chegaram os primeiros corpos esquartejados. Os “caçadores especiais” aquartelados no Toto foram emboscados quando iam socorrer populações nas vias e fazendas. Chegaram em sacos à cidade. Dezenas de mortos nas fazendas e vilas também começaram a chegar ao segundo dia. Era a guerra. Em Maio fui levado pela tropa para a Base Aérea do Negage com os meus colegas. Chegámos a Luanda na condição de refugiados. Continuo refugiado.

Dia I5 de Março, 1961. Grande Insurreição Popular no Norte. Uma das mais importantes datas da História Contemporânea de Angola. Muitos anos mais tarde entrevistei o Comandante Margoso, um dos Heróis desse acontecimento marcante. Foi publicada nas “centrais” do Diário de Luanda, em Março de 1976. O movimento insurrecional abrangeu os então distritos de Luanda (Dembos) Uíge, Zaire e Cabinda. A direcção política foi da União dos Povos de Angola (UPA) mais tarde FNLA. O líder era Holden Roberto. Respeitemos a História Contemporânea de Angola. É a única forma de nos respeitarmos como seres humanos.

Líderes europeus garantem que é preciso ganhar a guerra na Ucrânia porque uma derrota dos ucranianos leva “os russos a aproximarem-se das fronteiras da NATO” (ou OTAN). Úrsula von der Leyen afirma que “a Ucrânia está a defender a democracia na Europa”. Os ucranianos são ”os heróis do mundo livre”. Há muita gente que acredita nestas aldrabices. Ou simplesmente passa ao lado.

Os nazis de Kiev viraram defensores da liberdade e da democracia! Mas a ONU tem relatórios que denunciam uma “limpeza étnica no Leste da Ucrânia”, após 2014. Só acabou em Fevereiro de 2022. O Batalhão de Azov é apontado como a unidade nazi de extermínio de russos ucranianos.

A OTAN (ou NATO) cercou a Federação Russa. O cerco tornou-se mais apertado com a adesão da Suécia e da Finlândia aso bloco militar ofensivo, agressivo e reaccionário. Mas os líderes da União Europeia dizem que caso os russos ganhem a guerra na Ucrânia, aproximam-se das fronteiras da NATO! É exactamente ao contrário. Mas como imbecilizaram e infantilizaram as opiniões públicas, a aldrabice faz o seu caminho belicista. 

O caso mais chocante. Líderes do ocidente alargado dizem que os polacos são hoje o grande baluarte de defesa da democracia e do modo de vida ocidental. O Tribunal de Justiça da União Europeia declarou que a Polónia não é um Estado de Direito. Porque o governo colocou os Tribunais sob as suas ordens. Rejeita o primado da legislação da União Europeia alegando que precisa de combater o comunismo e a corrupção!

Na Polónia os Juízes são castigados pelo Tribunal Supremo se lavrarem sentenças que não agradam ao governo. Segundo a União Europeia, “as sanções incluem a redução do salário, a suspensão temporária das funções e o levantamento da imunidade para permitir o início de um processo penal contra o juiz em causa”. 

Sentenciou o Tribunal de Justiça da União Europeia: “As medidas adoptadas pelo legislador polaco são incompatíveis com as garantias de acesso a um Tribunal independente e imparcial, previamente estabelecidas por lei”. Bruxelas em 2021 impôs sanções ao governo de Varsóvia. Pagam um milhão de euros por dia, até anularem a legislação que atenta contra o Estado de Direito, Quando começou a desnazificação da Ucrânia a multa desceu para 500 mil euros diários. Varsóvia está a defender a liberdade e a democracia! E para mostrarem serviço querem a guerra custe o que custar.

* Jornalista

Sem comentários:

Mais lidas da semana