sábado, 2 de março de 2024

As duas guerras em que o Ocidente se perdeu -- Rafael Poch

Quem diria: as potências que até há pouco dominavam o cenário mundial agora estão isoladas, eticamente batidas e inseguras no terreno militar. Como isso se deu, tão rápido? Que brechas se abriram? Por que ainda não há o quê comemorar?

Rafael Poch* | Outras Palavras | Tradução: Antonio Martins | # Traduzido em português do Brasil

Falar separadamente da guerra na Ucrânia, do massacre em Gaza e das tensões em torno de Taiwan, pode levar a ignorar que essas três frentes de batalha ou pré-batalha, abertas na Europa, Oriente Médio e Ásia Oriental, apontam para a mesma crise do declínio ocidental. É a esse ponto de inflexão, na até então indiscutível preponderância mundial do Ocidente, que o presidente chinês, Xi Jinping, se refere quando diz que “O mundo está testemunhando mudanças sem precedentes em um século”.

Vamos ver, em dez pontos, alguns sintomas e tendências dessas mudanças:

1 - A distância entre o bloco ocidental (formado pelos EUA, União Europeia, Inglaterra, Japão e Austrália, para conter Rússia e China) e o resto do mundo, que rejeita sanções e chamados à ordem unida, está se ampliando. Do apoio, compreensão ou não alinhamento do Sul Global em relação à guerra na Ucrânia resulta o isolamento do Ocidente.

2 - O massacre em Gaza e a cumplicidade ocidental, política e midiática com ele (particularmente clara na França e na Alemanha), consagram um verdadeiro suicídio moral do Ocidente. Sua credibilidade em matéria de direitos humanos, mediação de conflitos e justiça global é igual a zero. Seu duplo padrão ao medir Ucrânia e Gaza é evidente.

As mesmas potências que estão financiando e armando a Ucrânia estão financiando e armando um genocídio pelas forças israelenses supremacistas raciais em Gaza. Isso dá uma nova plausibilidade à narrativa russa de que, sem sua intervenção militar, teria ocorrido na Crimeia e no Donbass uma limpeza étnica, expulsão e massacre de pró-russos por forças parcialmente animadas por uma ideologia de extrema direita com o apoio e a bênção do Ocidente.

Toda morte na prisão de um opositor político é, por definição, suspeita – seja a do russo Aleksei Navalny ou a de Gonzalo Lira, um blogueiro “incorreto” norte-americano de origem chilena estabelecido em Kharkov, morto em janeiro em uma prisão ucraniana sem pena nem glória. Ambos foram acusados por seus carcereiros de trabalhar para serviços secretos (ocidentais ou russos). Não se deve esperar uma investigação crível sobre a causa dessas mortes em países onde a eliminação de opositores tem rastros recentes e conhecidos. Os governos, políticos e meios de comunicação que mais protestam pela morte de Navalny são os mesmos que ignoraram a morte de Lira, ou o destino de Assange, e que apoiaram o massacre em Gaza. Eles não têm credibilidade. Os únicos que podem expressar sua consternação com credibilidade por esses crimes são aqueles que levam os direitos humanos a sério e, portanto, rejeitam o uso hipócrita dos direitos humanos como arma na luta contra o adversário.

3 - O esforço para excluir a Rússia da Europa voltou-se contra a União Europeia, reforça a “grande Eurásia” e enfraquece o Ocidente perante o resto do mundo. A exclusão resultou em a Rússia olhar para o Oriente, ao traçar suas parcerias estratégicas, e encerrar 300 anos de esforço por integrar-se à Europa.

A Rússia euroasiática tornou-se muito menos dependente da UE (suas indústrias estratégicas, corredores de transporte e instrumentos financeiros dependem menos do Ocidente) e, ao mesmo tempo, seu foco na Ásia fortalece a cooperação entre Índia e China.

Moscou já não precisa da União Europeia – mas esta ainda não se deu conta. Por isso, as sanções ricocheteiam contra ela, que importa petróleo e derivados russos através da Índia e compra gás natural liquefeito dos EUA, três ou quatro vezes mais caro que o gás russo, o que prejudica sua economia. Resultado: a Rússia tornou-se a maior economia da Europa (previsão de crescimento de 4% em 2024) e a Alemanha está à beira da recessão (previsão de 0,2%).

4 - A União Europeia torna-se mais dependente, política e economicamente, dos EUA e com isso se enfraquece. A estratégia russa não é integrar o país à Europa, mas integrar a União Europeia ao grande polo continental euroasiático, cujo motor é a China.

5 - A iniciativa chinesa do Novo Cinturão e Rota (ver mapa acima) amplia seu peso na Ásia e na África Oriental, deslocando a influência dos Estados Unidos. A América Latina desenvolve suas relações com China, Índia, Irã, erodindo a hegemonia dos Estados Unidos no hemisfério ocidental.

6 - As sanções ocidentais estimulam a reorganização industrial da Rússia e a integração entre Rússia, China e Irã para programas civis e militares comuns.

7 - A apreensão pelos EUA das reservas em dólares de países como Irã, Venezuela, Rússia e Afeganistão complica a capacidade de Washington de financiar sua projeção global. O dólar é visto com cautela e as sanções empurram muitos países a negociar em outras moedas e a criar alternativas ao sistema internacional de transferências financeiras (SWIFT). Tudo isso reduz a eficácia das sanções como instrumento de política externa. O senador norte-americano Marco Rubio expressa isso assim: “Em cinco anos, não poderemos mais falar de sanções, porque haverá muitos países que negociarão em outras moedas e perderemos a possibilidade de sancioná-los”. (29 de março de 2023 na Fox News)

8 - A superioridade militar dos Estados Unidos está em questão e, em caso de uma grande guerra, poderia perdê-la. Nas palavras do ex-vice-secretário de Estado Aaron Wess Mitchell: “Isso aconteceria porque, ao contrário dos Estados Unidos, que devem ser fortes em três pontos do mapa ao mesmo tempo, cada um de seus adversários – China, Rússia e Irã – só precisa ser forte em sua própria região para alcançar seus objetivos”. (Em Foreign Policy 16/Nov/2023)

9 - O risco de uma guerra nuclear é muito maior hoje do que durante a Guerra Fria. As três frentes abertas envolvem pelo menos cinco potências nucleares: Estados Unidos, Israel, Rússia, China e Coreia do Norte (sete, se incluirmos Inglaterra e França).

10 - Há um crescente descontentamento com o sistema de dominação norte-americano do final do século XX e um desejo de substituí-lo por uma ordem multipolar. Mas, como diz o ex-embaixador americano Chas Freeman, autor de alguns destes dez pontos, “até agora ninguém considerou aonde levará o novo sistema internacional, que implica uma interação entre Estados mais complexa do que antes. Por isso, é preciso lembrar o velho ditado: “cuidado com o que desejas, porque pode se tornar realidade”. (globalaffairs.ru)

Todas as especulações e previsões sobre a correlação de forças globais seriam triviais se não fosse pela dinâmica de conflito na qual estamos entrando, que é muito contraditória com o momento que a humanidade está enfrentando neste século. Estamos vivendo uma corrida contra o tempo. Uma época de desafios existenciais insolúveis sem uma grande concertação internacional. Desafios como o aquecimento global que crescem e se intensificam conforme não agimos contra eles.

O conflito entre potências é algo que não podemos mais nos permitir, na condição de espécie ameaçada por nossa própria ação. Ou, melhor dizendo, pelo metabolismo do sistema socioeconômico inventado pelo Ocidente há um par de séculos.

* Rafael Poch (1956) é um jornalista espanhol. Atualmente é correspondente de La Vanguardia em Berlim, depois de ter desempenhado o mesmo papel

Foto: Rodrigo Abd/AP

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