sexta-feira, 15 de março de 2024

Portugal | VOTAR TUDO A PERDER

Paula Cardoso* | Diário de Notícias | opinião

Estava de tal forma frustrado, zangado e desesperançado que, entre a necessidade e o engenho, se juntou ao coro crescente dos que sentem que nada têm a perder.

Observador privilegiado do contexto étnico-racial envolvente, dotado de formação académica e com acesso a informação, avançou sem nunca acreditar verdadeiramente que tudo aquilo pudesse acontecer. Escrito de outro modo, tentou a sua sorte na roleta das distorções e afeições colectivas.

No final, saiu-lhe um sucesso de vendas: alguém com poder financeiro começou por comprar a ideia, reconhecidamente abjecta, e, em menos de nada, a contaminação estava produzida.

As pessoas aderiram massivamente à narrativa, disseminada como uma realidade nua e crua, quando toda a verdade e autenticidade ali contidas nunca passaram de uma vendável ficção. Ou melhor: de American Fiction (Ficção Americana), título do filme de Cord Jefferson distinguido como Melhor Argumento Adaptado na última gala dos Óscares, que aconteceu no domingo, 10, dia de Legislativas.

Da trama hollywoodesca para a trama política, as semelhanças não são pura coincidência: nas duas situações, há uma evidente estratégia de capitalização de preconceitos e estereótipos.

Em ambos os cenários, sobressai igualmente uma cada vez mais tortuosa relação com a verdade, em que tudo se torna justificável à luz da narrativa fabricada, porque é nela que as pessoas preferem acreditar.

Enquanto no filme somos desafiados a reflectir sobre a dificuldade de contrariar os estereótipos colados à identidade negra - “os brancos gostam de pensar que querem a verdade, quando apenas se querem sentir absolvidos”, ouvimos a determinada altura -, na arena da política partidária estamos a ser confrontados com a facilidade de mobilização em torno dos chamados “factos alternativos”.

A normalização da mentira tornou-se especialmente visível durante a cobertura televisiva da última campanha eleitoral, em especial na análise dos debates que opuseram os líderes dos partidos com assento parlamentar.

Campeão na propagação de informações falsas, André Ventura viu coroada como combativa e até carismática a sua estratégia mitómana.

Miguel Santos Carrapatoso, um dos inúmeros comentadores que analisou os frente-a-frente das Legislativas, assumiu mesmo, na SIC Notícias, que Ventura teria sempre zero se fosse avaliado em função da veracidade das suas intervenções. O editor-adjunto de Política do Observador, que falava depois do embate entre o rosto do Chega e Rui Tavares, do Livre, não se coibiu sequer de constatar que “isso seria mau para as televisões, para as rádios e os jornais”.

Vale tudo, portanto, em nome das audiências.

Nesta denominada era da pós-verdade, já não se exige que os responsáveis políticos sejam sérios, nem tão pouco que aparentem ser. Podem manipular e até inventar factos, insistir em mentiras descaradas, insultar e estigmatizar grupos de pessoas que, façam o que fizerem, desde que digam aquilo que se quer ouvir, e desde que confirmem crenças instaladas, vão continuar a somar apoios.

A atracção é global, e tem conquistado espaço em Portugal: a extrema-direita chegou à Assembleia da República em 2019, com um deputado único e, nestas legislativas, garantiu mais de 1 milhão de votos e pelo menos 48 lugares, depois de em 2022 já se ter posicionado como a terceira força mais votada, conquistando 12 assentos parlamentares.

Que fenómeno é este que não só sobrevive como se amplifica diante de condenações judiciais, acusações de financiamento ilícito e corrupção?

Vejo-o sobretudo como uma expressão das nossas perdas sociais, e menos como uma explosão de ódios adormecidos, ou ignorâncias somadas. Porque, por mais fascizantes que sejam as propostas da extrema-direita - e não tenhamos dúvidas de que o são -, é na proliferação dos descontentamentos que ela colige forças para governar.

Enquanto continuarmos a perder direitos - realidade demonstrada pelos protestos nas áreas da habitação, Saúde, Trabalho, Educação, Justiça ou alterações climáticas -, sem que sucessivos Governos apresentem soluções estruturais que nos garantam viver dignamente, persistirá junto de muitos a ideia de que pior não pode ficar.

Infelizmente pode, e a História está repleta de exemplos que o demonstram. Tenhamos memória, e resistamos! Com unidade e luta.

* Produtora de conteúdos

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