Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Quando um deputado
apelou a Fernando Ulrich para que pedisse desculpas pelas suas frases
sobre a austeridade e os sem-abrigo, o banqueiro respondeu: "Não sei
porque alguém se choca, quando falei dos sem-abrigo. Não é uma falta de
respeito, pelo contrário, na minha cabeça era um sinal de respeito pelas
pessoas que já viveram nessa situação tão dramática." E acrescentou:
"Aquela situação eu também posso vir a passar ou a minha família." E
não pediu desculpas, porque não recebe "lições de sensibilidade social de
ninguém".
Não vou desenvolver
sobre as várias pérolas com que este senhor nos tem oferecido. Acho que toda a
gente com o mínimo de equipamento cerebral percebe a bestialidade das coisas
que o senhor vai dizendo - ainda me lembro quando propôs que os
desempregados trabalhassem à borla para o seu banco. E, pela reincidência, fica
claro que é isso mesmo que falta a este senhor: capacidades cognitivas
medianas.
Também não faço
questão nenhuma que peça desculpa a ninguém. Fernando Ulrich não foi eleito por
ninguém, não representa ninguém, não deve desculpas a ninguém. É apenas um
banqueiro. O que ele diz e pensa é para mim absolutamente irrelevante. Nunca me
sentaria à mesa com este senhor para saber as suas opiniões. Nunca leria uma
entrevista sua para saber o que acha da situação do País. Nunca me deslocaria a
uma conferência para saber das suas reflexões sobre política e economia. Infelizmente,
a comunicação social e o País transformaram estes analfabetos políticos em
oráculos da Nação. E dá nisto.
O que me interessa,
nesta matéria, é apenas uma certa curiosidade antropológica. É mais ou menos
como analisar o comportamento dos concorrentes da Casa dos Segredos. Porque
será que, quando vê um sem-abrigo, a cabeça pouco sofisticada do senhor Ulrich
pensa que um dia ele também pode vir a estar assim? Pensará o banqueiro
que todos, sem exceção, estão expostos da mesma forma à austeridade e a todos
ela pode atingir com a mesma violência? Não é provável que, no fundo do que
reste da sua alma, acredite que, daqui a dois ou três anos, ele pode mesmo
estar a dormir debaixo das arcadas do Terreiro do Paço. Não é provável que não
saiba, até por experiência própria, que quem nasce no privilégio e vive do
privilégio está defendido das desventuras da vida. Mas, teoricamente, Ulrich
acredita que todos somos mesmo iguais. O que quer dizer que acredita que os
sem-abrigo ou tiveram menos talento ou tiveram apenas mais azar do que ele.
Porque acredita que o que teve e tem na vida não resulta de um privilégio mas
de um direito por ele conquistado.
Nada vou explicar
ao senhor Ulrich, até porque duvido que o compreenda. A insensibilidade social
crónica não é uma questão de classe. Há gente rica e com consciência do seu
privilégio, há gente pobre que se enriquecesse seria igual ao senhor Ulrich. É
uma questão cultural. Quem não tem mundo não sabe dos outros. E é muito
mais ignorante do que um analfabeto. E se alfabetização nunca vem tarde,
tentar explicar o óbvio a quem numa vida inteira não o percebeu é uma perda de
tempo.
Mas, pelo menos
para nós, vale a pena recordar que enquanto o Rendimento Social de
Inserção e o subsídio de desemprego eram cortados, o Estado pediu 12 mil
milhões emprestados à Europa para o injetar em vários bancos. E, entre eles, o
banco do senhor Ulrich. Que, com esse dinheiro que os contribuintes lhe
arranjaram, o senhor Ulrich compra dívida pública portuguesa. E que isso lhe
permite apresentar excelentes resultados num banco que estava em estado
comatoso. Ou seja, os lucros do senhor Ulrich são o que falta aos sem-abrigo.
Não resultam do seu talento mas da sua capacidade (e dos restantes banqueiros
portugueses e europeus) chantagearem os Estados e manobrarem os decisores
políticos. Isto, depois de terem levado a Europa e o mundo Ocidental, pela sua
ganância irresponsável, ao colapso.
A diferença entre o
senhor Ulrich e um sem-abrigo, entre o senhor Ulrich e qualquer pessoa que viva
realmente do seu trabalho, entre o senhor Ulrich e o cidadão comum, é que ele
tem esta capacidade de pôr o Estado a trabalhar para si enquanto os restantes
são abandonados à sua sorte.
Mas há uma
diferença mais profunda. E dessa o senhor Ulrich não tem culpa. Vivemos numa
sociedade desigual. E a desigualdade começa no berço. Conheço ricos e pobres
descerebrados. Conheço ricos e pobres irresponsáveis. Conheço ricos e pobres
sem qualquer talento. Os ricos com todas estas características conseguem, regra
geral, acabar um curso, arranjar um emprego por via duma boa rede social a
apetrechar-se do mínimo de instrumentos para não serem indigentes. E mesmo que
não consigam, uma mesada familiar ou um emprego conseguido por favor resolve o
problema. Um rico próximo de atrasado mental sai-se, regra geral, melhor
do que um pobre muitíssimo capaz.
Não me fico pela
riqueza, para não me deixar de fora. Nasci numa família sem cheta mas
culturalmente privilegiada. E isso deu-me instrumentos iniciais melhores do que
outros tiveram. Logo, menos merecedor de qualquer coisa que tenha conseguido na
vida. E isso dá-me, e tendo não o esquecer, obrigações éticas acrescidas
perante os outros.
Porque, e agora sei
que até o senhor Ulrich será capaz de me acompanhar, não nascemos todos
iguais em deveres e direitos. Nem todos temos de provar, da mesma forma, o que
valemos, nem todos temos de pagar o preço dos nossos erros. Não estou,
note-se, a pessoalizar neste banqueiro. Não sei nem tenho interesse em saber
grande coisa sobre ele. Sei que Ulrich provém de uma família abastada pelo
menos desde o século XVIII que se juntou a outra família abastada, na pequena
rede empresarial que orbitou em volta da ditadura. Sei que antes de se dedicar
aos negócios fez umas perninhas no jornalismo e na política. Sei que foi um dos
promotores do Compromisso Portugal, um grupo de gestores que defendia menos
Estado para nós e que acabou a pedir mais Estado para eles. E sei que o seu
antecessor no BPI se chamava Artur Santos Silva e que, sendo uma pessoa de quem
geralmente discordo, reconheço haver entre os dois um abismo cultural e
intelectual.
Estou a falar de
uma coisa mais geral: o privilégio. O privilégio que vem do berço e que deveria
dar a quem não o mereceu responsabilidades sociais acrescidas. Mesmo em
alguns países com uma organização social e económica distante da que eu defendo
existe esta ideia: a de que quem é privilegiado tem o dever de devolver parte
do que tem à sociedade. Em Portugal, devolvem conselhos, arrogância e este
género de parvoeiras.
E é esse privilégio
que livrará sempre o senhor Ulrich de viver debaixo da ponte. Não apenas o
privilégio de ser rico. Mas um mais insidioso do que esse: o privilégio de
mandar no Estado que manda em nós. O privilégio que lhe permite pôr os
contribuintes a pagar juros à troika para lhe emprestarem dinheiro a
para ele nos emprestar a nós e nós lhe pagarmos juros a ele. O privilégio que
permitiu a um dos seus ramos familiares, de quem herdou parte da sua fortuna,
ter a proteção do Estado Novo e prosperar mais um pouco com o condicionalismo
industrial. O privilégio de, em ditadura ou em democracia, ter a proteção que o
Estado, nos momentos difíceis, nos nega a todos nós. Um privilégio que torna
estas frases especialmente insuportáveis.
Não, não quero
nenhum pedido de desculpas do senhor Ulrich. Quero apenas de volta, já e
depressa, os 1500 milhões de euros que o Estado pediu emprestado à troika para
pôr no seu banco. São nossos e chegavam e sobravam para tirar os sem-abrigo da
rua. Devolva-os e pode continuar a dizer os disparates que entender.
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