quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Portugal: AS COISAS QUE NÃO ENTRAM NA CABEÇA DO SENHOR ULRICH




Daniel Oliveira – Expresso, opinião

Quando um deputado apelou a Fernando Ulrich para que pedisse desculpas pelas suas frases sobre a austeridade e os sem-abrigo, o banqueiro respondeu: "Não sei porque alguém se choca, quando falei dos sem-abrigo. Não é uma falta de respeito, pelo contrário, na minha cabeça era um sinal de respeito pelas pessoas que já viveram nessa situação tão dramática." E acrescentou: "Aquela situação eu também posso vir a passar ou a minha família." E não pediu desculpas, porque não recebe "lições de sensibilidade social de ninguém".

Não vou desenvolver sobre as várias pérolas com que este senhor nos tem oferecido. Acho que toda a gente com o mínimo de equipamento cerebral percebe a bestialidade das coisas que o senhor vai dizendo - ainda me lembro quando propôs que os desempregados trabalhassem à borla para o seu banco. E, pela reincidência, fica claro que é isso mesmo que falta a este senhor: capacidades cognitivas medianas.

Também não faço questão nenhuma que peça desculpa a ninguém. Fernando Ulrich não foi eleito por ninguém, não representa ninguém, não deve desculpas a ninguém. É apenas um banqueiro. O que ele diz e pensa é para mim absolutamente irrelevante. Nunca me sentaria à mesa com este senhor para saber as suas opiniões. Nunca leria uma entrevista sua para saber o que acha da situação do País. Nunca me deslocaria a uma conferência para saber das suas reflexões sobre política e economia. Infelizmente, a comunicação social e o País transformaram estes analfabetos políticos em oráculos da Nação. E dá nisto.

O que me interessa, nesta matéria, é apenas uma certa curiosidade antropológica. É mais ou menos como analisar o comportamento dos concorrentes da Casa dos Segredos. Porque será que, quando vê um sem-abrigo, a cabeça pouco sofisticada do senhor Ulrich pensa que um dia ele também pode vir a estar assim? Pensará o banqueiro que todos, sem exceção, estão expostos da mesma forma à austeridade e a todos ela pode atingir com a mesma violência? Não é provável que, no fundo do que reste da sua alma, acredite que, daqui a dois ou três anos, ele pode mesmo estar a dormir debaixo das arcadas do Terreiro do Paço. Não é provável que não saiba, até por experiência própria, que quem nasce no privilégio e vive do privilégio está defendido das desventuras da vida. Mas, teoricamente, Ulrich acredita que todos somos mesmo iguais. O que quer dizer que acredita que os sem-abrigo ou tiveram menos talento ou tiveram apenas mais azar do que ele. Porque acredita que o que teve e tem na vida não resulta de um privilégio mas de um direito por ele conquistado.

Nada vou explicar ao senhor Ulrich, até porque duvido que o compreenda. A insensibilidade social crónica não é uma questão de classe. Há gente rica e com consciência do seu privilégio, há gente pobre que se enriquecesse seria igual ao senhor Ulrich. É uma questão cultural. Quem não tem mundo não sabe dos outros. E é muito mais ignorante do que um analfabeto. E se alfabetização nunca vem tarde, tentar explicar o óbvio a quem numa vida inteira não o percebeu é uma perda de tempo.

Mas, pelo menos para nós, vale a pena recordar que enquanto o Rendimento Social de Inserção e o subsídio de desemprego eram cortados, o Estado pediu 12 mil milhões emprestados à Europa para o injetar em vários bancos. E, entre eles, o banco do senhor Ulrich. Que, com esse dinheiro que os contribuintes lhe arranjaram, o senhor Ulrich compra dívida pública portuguesa. E que isso lhe permite apresentar excelentes resultados num banco que estava em estado comatoso. Ou seja, os lucros do senhor Ulrich são o que falta aos sem-abrigo. Não resultam do seu talento mas da sua capacidade (e dos restantes banqueiros portugueses e europeus) chantagearem os Estados e manobrarem os decisores políticos. Isto, depois de terem levado a Europa e o mundo Ocidental, pela sua ganância irresponsável, ao colapso.

A diferença entre o senhor Ulrich e um sem-abrigo, entre o senhor Ulrich e qualquer pessoa que viva realmente do seu trabalho, entre o senhor Ulrich e o cidadão comum, é que ele tem esta capacidade de pôr o Estado a trabalhar para si enquanto os restantes são abandonados à sua sorte.

Mas há uma diferença mais profunda. E dessa o senhor Ulrich não tem culpa. Vivemos numa sociedade desigual. E a desigualdade começa no berço. Conheço ricos e pobres descerebrados. Conheço ricos e pobres irresponsáveis. Conheço ricos e pobres sem qualquer talento. Os ricos com todas estas características conseguem, regra geral, acabar um curso, arranjar um emprego por via duma boa rede social a apetrechar-se do mínimo de instrumentos para não serem indigentes. E mesmo que não consigam, uma mesada familiar ou um emprego conseguido por favor resolve o problema. Um rico próximo de atrasado mental sai-se, regra geral, melhor do que um pobre muitíssimo capaz.

Não me fico pela riqueza, para não me deixar de fora. Nasci numa família sem cheta mas culturalmente privilegiada. E isso deu-me instrumentos iniciais melhores do que outros tiveram. Logo, menos merecedor de qualquer coisa que tenha conseguido na vida. E isso dá-me, e tendo não o esquecer, obrigações éticas acrescidas perante os outros.

Porque, e agora sei que até o senhor Ulrich será capaz de me acompanhar, não nascemos todos iguais em deveres e direitos. Nem todos temos de provar, da mesma forma, o que valemos, nem todos temos de pagar o preço dos nossos erros. Não estou, note-se, a pessoalizar neste banqueiro. Não sei nem tenho interesse em saber grande coisa sobre ele. Sei que Ulrich provém de uma família abastada pelo menos desde o século XVIII que se juntou a outra família abastada, na pequena rede empresarial que orbitou em volta da ditadura. Sei que antes de se dedicar aos negócios fez umas perninhas no jornalismo e na política. Sei que foi um dos promotores do Compromisso Portugal, um grupo de gestores que defendia menos Estado para nós e que acabou a pedir mais Estado para eles. E sei que o seu antecessor no BPI se chamava Artur Santos Silva e que, sendo uma pessoa de quem geralmente discordo, reconheço haver entre os dois um abismo cultural e intelectual.

Estou a falar de uma coisa mais geral: o privilégio. O privilégio que vem do berço e que deveria dar a quem não o mereceu responsabilidades sociais acrescidas. Mesmo em alguns países com uma organização social e económica distante da que eu defendo existe esta ideia: a de que quem é privilegiado tem o dever de devolver parte do que tem à sociedade. Em Portugal, devolvem conselhos, arrogância e este género de parvoeiras.

E é esse privilégio que livrará sempre o senhor Ulrich de viver debaixo da ponte. Não apenas o privilégio de ser rico. Mas um mais insidioso do que esse: o privilégio de mandar no Estado que manda em nós. O privilégio que lhe permite pôr os contribuintes a pagar juros à troika para lhe emprestarem dinheiro a para ele nos emprestar a nós e nós lhe pagarmos juros a ele. O privilégio que permitiu a um dos seus ramos familiares, de quem herdou parte da sua fortuna, ter a proteção do Estado Novo e prosperar mais um pouco com o condicionalismo industrial. O privilégio de, em ditadura ou em democracia, ter a proteção que o Estado, nos momentos difíceis, nos nega a todos nós. Um privilégio que torna estas frases especialmente insuportáveis.

Não, não quero nenhum pedido de desculpas do senhor Ulrich. Quero apenas de volta, já e depressa, os 1500 milhões de euros que o Estado pediu emprestado à troika para pôr no seu banco. São nossos e chegavam e sobravam para tirar os sem-abrigo da rua. Devolva-os e pode continuar a dizer os disparates que entender.

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