sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

África do Sul: A “reconciliação impossível”, uma obra-prima da política

 

Jorge Almeida Fernandes - Público
 
1. O jornalista hispano-britânico John Carlin, que durante muitos anos o acompanhou, recusa-se a comparar Mandela com qualquer outro político: “Mandela estava 500 anos à frente dos políticos de hoje.” Menos enfaticamente, explica Cyril Ramaphosa, antigo presidente do sindicato dos mineiros e secretário-geral do Congresso Nacional Africano (ANC): “É um homem histórico. O seu pensamento estava sempre à nossa frente. Tinha em mente a posteridade — ‘como é que eles olharão o que nós fizemos’.”
 
Uma das razões que engrandeceu o mito foi a aparente impossibilidade duma solução pacífica para a tragédia do apartheid. Mandela foi actor de uma obra-prima da política: a transição do apartheid para democracia, envolvendo a construção duma nação sul-africana, a “nação arco-íris”. A primeira meta — um homem, um voto — foi alcançada. Em Abril de 1994, milhões de sul-africanos votavam em conjunto pela primeira vez na sua história. A nação é que continua a ser a questão crítica da África do Sul.
 
2. Mandela foi preso e condenado em 1962 e de novo julgado em 1964. Escapou à pena de morte. Foi condenado, com os seus companheiros, a prisão perpétua por “alta traição e tentativa de derrube do governo [branco] pela força”.
 
Na sua defesa, fez uma declaração que correu o mundo: “Dediquei a minha vida à luta pelo povo africano. Combati a dominação branca e combati a dominação negra. Acarinhei o ideal de uma sociedade democrática e livre em que todos vivam em conjunto, em harmonia e com igualdade de oportunidades. É um ideal que espero alcançar e pelo qual espero viver. Mas, se necessário, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer.”
 
Não era retórica. Esta declaração de princípios sempre o guiará e determinará o que se irá passar na transição. Mandela cedo percebeu que os afrikaners ou boers sentiam-se tão profundamente africanos quanto os negros. E, que antes de oprimirem os negros, os afrikaners tinham sido oprimidos pelos ingleses. E os boers partilhavam de um “complexo de inferioridade” análogo ao dos negros.
 
Mandela nunca foi um pacifista e depois do massacre de Sharpeville (Março de 1960), em que a polícia matou 69 manifestantes negros desarmados, incitou os veteranos do ANC a aceitarem o princípio da luta armada. Não era uma opção ideológica mas pragmática. Explicou no tribunal que são os opressores quem determina os meios de resistência. O governo fechara à população negra todas as vias legais e disparava sobre os que exigiam as liberdades.
 
“A estratégia [de Mandela] era muito mais focada na psicologia do que no combate”, escreveu o historiador americano Ryan Irwin. “O objectivo de Mandela não era aterrorizar a sociedade branca mas ‘destruir a legalidade do governo’, através da conciencialização das massas e do impacto na opinião internacional.” A possibilidade de uma vitória militar sobre o regime do apartheid era “um sonho distante, senão impossível”, confessa Mandela nas suas memórias.
 
Ao longo dos anos 1970-80, motins, manifestações e actos de desobediência civil tornam-se maciços e incontroláveis. E a sua ressonância internacional cresce exponencialmente.
 
3. A situação do regime sul-africano torna-se insustentável e vai tornar possível o impensável: a negociação. Niel Barnard, director dos serviços secretos sul-africanos (NIS) na era de P.W. Botha e Frederik De Klerk, faz o diagnóstico. “No início dos anos 80, o governo doapartheid estava a caminho de chocar com um muro. O ANC tinha conseguido isolar-nos na cena internacional, sofríamos sanções e boicotes. Os motins estalavam nas townships, por toda a parte. Havia duas escolas de pensamento. Ou aniquilávamos definitivamente o movimento de libertação, o que era a solução do assalto militar. Ou optávamos por uma solução negociada. Eu fazia parte deste grupo. Queríamos também tomar a iniciativa de conversações, antes de estarmos encostados à parede, de modo a negociarmos em posição de força.”
 
Em Fevereiro de 1985, o presidente Botha oferece a Mandela a liberdade em troca da condenação da violência. O prisioneiro recusa. Meses mais tarde, propõe-lhe a abertura de negociações. Recebe a resposta de sempre: “Só os homens livres podem negociar.”
 
Para Mandela, os tempos da negociação são uma questão de táctica e não de princípio. Em 1985, é obrigado a fazer uma cirurgia à próstata num hospital onde é contactado por um emissário do governo. Em 1986 sente que a situação se tornou favorável e o problema passa a ser convencer os dirigentes do ANC a aceitarem que ele encete conversações, o que para muitos era um suicídio político. Mandela assumiu um incalculável risco, pessoal e histórico, que se falhasse poderia pôr em causa o futuro do país.
 
Entre Maio de 1988 e 11 de Fevereiro de 1990, Barnard e Mandela participarão em 48 reuniões secretas. Outra figura central na negociação é o ministro da Justiça, Kobie Coetsee.
 
Em Julho de 1989, Mandela encontra-se com o presidente Botha. Este fica surpreendido pela correcção com que o prisioneiro fala afrikaans e pelo seu conhecimento da História boer. Mandela seguiu sempre um princípio: “Aprende a língua e o jogo favorito do teu inimigo”.
 
Prossegue Barnard: “A regra central de toda a negociação é identificar a pessoa que detém realmente o poder. E não havia dúvida de que nessa época o poder estava nas mãos de um homem chamado Nelson Mandela. Se queremos negociar não podemos cair na facilidade e no erro de escolher uma pessoa dócil, que não batalhará muito para obter concessões. E Mandela não era fácil. Fixava-se numa linha e nunca se afastava dela. Sabia mostrar-se intransigente e ter acessos de cólera. Não era um anjo. (...) Diga-se muito claramente que jamais teríamos chegado a uma solução negociada sem a participação activa de Nelson Mandela.” Só ele tinha autoridade para fazer concessões e as impor ao ANC e à população negra.
 
Uma regra básica da negociação é evitar que “a outra parte” sinta que perdeu. Ambas as partes têm de ceder.
 
4. Em Setembro de 1989, Frederik W. De Klerk substitui Botha e o processo negocial acelera-se. Mandela fixa os objectivos: a regra democrática “um homem, um voto”; a legalização do ANC, dos seus aliados — o Partido Comunista e os sindicatos; a libertação de todos os presos políticos; o desmantelamento dos bantustões. Só nestas condições, aceita ser libertado – no dia 11 de Fevereiro de 1990 – para iniciar a grande ronda negocial com o governo de De Klerk.
 
Até às eleições de 1994, o país vive em convulsão: confrontos sangrentos entre o ANC e o partido zulu Inkatha, milhares de assassínios, conspirações da extrema-direitabranca. Mandela torna-se a figura central do país, sendo tratado como se já fosse presidente. Faça-se também justiça a De Klerk, que manifestou uma excepcional coragem política.
 
A batalha que agora se trava já não é o fim do apartheid. É a da “impossível reconciliação” dos inimigos, o seu reconhecimento mútuo com parte da mesma nação. “É libertar ao mesmo tempo opressores e oprimidos, guiar o povo num caminho minado, entre os temores dos brancos e as esperanças dos negros”, resumiu o romancista André Brink.
 
A reconciliação passa pelo perdão e pelos sinais de confiança. Uma vez Presidente, Mandela torna-se o grande mestre dos sinais simbólicos. Mantém no seu posto a grande maioria dos altos funcionários brancos. Visita a viúva de Hendrik Verwoerd, o arquitecto do apartheid. Faz questão de apertar a mão ao promotor que em 1964 pedira a pena de morte para ele. Garante a propriedade dos brancos. “O seu sorriso é a mensagem”.
 
John Carlin escreveu um livro de que Clint Eastwood fez um filme — Invictus. O título em português é Conquistando o Inimigo. Mas o original acrescenta um pós-título: “Nelson Mandela e o jogo que fez uma nação.” No entanto, a nação ainda não está consolidada. As identidades raciais subsistem mesmo se o racismo foi ilegalizado. O fim do apartheid deu o poder à maioria e ao ANC, mas não trouxe o paraíso.
 
Houve transições admiráveis — outras “reconciliações impossíveis” — como as da Espanha e da Polónia, que Mandela muito estudou. Mas a África do Sul, com todas as convulsões, será a mais impressionante. Para lá da coragem e liderança, Mandela deixou um derradeiro legado, anota o jornalista e escritor Martin Plaut: “Talvez o maior presente que ele fez à África do Sul tenha sido o de saber abandonar o cargo. Ao fazê-lo, provou que este país pode avançar sem ele. Ao contrário de tantos outros presidentes africanos, não se considerou indispensável.”
 
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