Jorge Almeida Fernandes - Público
1. O jornalista
hispano-britânico John Carlin, que durante muitos anos o acompanhou, recusa-se
a comparar Mandela com qualquer outro político: “Mandela estava 500 anos à
frente dos políticos de hoje.” Menos enfaticamente, explica Cyril Ramaphosa,
antigo presidente do sindicato dos mineiros e secretário-geral do Congresso
Nacional Africano (ANC): “É um homem histórico. O seu pensamento estava sempre
à nossa frente. Tinha em mente a posteridade — ‘como é que eles olharão o que
nós fizemos’.”
Uma das razões que
engrandeceu o mito foi a aparente impossibilidade duma solução pacífica para a
tragédia do apartheid. Mandela foi actor de uma obra-prima da política: a
transição do apartheid para democracia, envolvendo a construção duma nação
sul-africana, a “nação arco-íris”. A primeira meta — um homem, um voto — foi
alcançada. Em Abril de 1994, milhões de sul-africanos votavam em conjunto pela
primeira vez na sua história. A nação é que continua a ser a questão crítica da
África do Sul.
2. Mandela foi
preso e condenado em 1962 e de novo julgado em 1964. Escapou à pena de morte.
Foi condenado, com os seus companheiros, a prisão perpétua por “alta traição e
tentativa de derrube do governo [branco] pela força”.
Na sua defesa, fez
uma declaração que correu o mundo: “Dediquei a minha vida à luta pelo povo
africano. Combati a dominação branca e combati a dominação negra. Acarinhei o
ideal de uma sociedade democrática e livre em que todos vivam em conjunto, em
harmonia e com igualdade de oportunidades. É um ideal que espero alcançar e
pelo qual espero viver. Mas, se necessário, é um ideal pelo qual estou disposto
a morrer.”
Não era retórica.
Esta declaração de princípios sempre o guiará e determinará o que se irá passar
na transição. Mandela cedo percebeu que os afrikaners ou boers sentiam-se tão
profundamente africanos quanto os negros. E, que antes de oprimirem os negros,
os afrikaners tinham sido oprimidos pelos ingleses. E os boers partilhavam de
um “complexo de inferioridade” análogo ao dos negros.
Mandela nunca foi
um pacifista e depois do massacre de Sharpeville (Março de 1960), em que a
polícia matou 69 manifestantes negros desarmados, incitou os veteranos do ANC a
aceitarem o princípio da luta armada. Não era uma opção ideológica mas
pragmática. Explicou no tribunal que são os opressores quem determina os meios
de resistência. O governo fechara à população negra todas as vias legais e
disparava sobre os que exigiam as liberdades.
“A estratégia [de
Mandela] era muito mais focada na psicologia do que no combate”, escreveu o
historiador americano Ryan Irwin. “O objectivo de Mandela não era aterrorizar a
sociedade branca mas ‘destruir a legalidade do governo’, através da
conciencialização das massas e do impacto na opinião internacional.” A
possibilidade de uma vitória militar sobre o regime do apartheid era “um sonho
distante, senão impossível”, confessa Mandela nas suas memórias.
Ao longo dos anos
1970-80, motins, manifestações e actos de desobediência civil tornam-se maciços
e incontroláveis. E a sua ressonância internacional cresce exponencialmente.
3. A situação do
regime sul-africano torna-se insustentável e vai tornar possível o impensável:
a negociação. Niel Barnard, director dos serviços secretos sul-africanos (NIS)
na era de P.W. Botha e Frederik De Klerk, faz o diagnóstico. “No início dos
anos 80, o governo doapartheid estava a caminho de chocar com um muro. O ANC
tinha conseguido isolar-nos na cena internacional, sofríamos sanções e
boicotes. Os motins estalavam nas townships, por toda a parte. Havia duas
escolas de pensamento. Ou aniquilávamos definitivamente o movimento de
libertação, o que era a solução do assalto militar. Ou optávamos por uma
solução negociada. Eu fazia parte deste grupo. Queríamos também tomar a
iniciativa de conversações, antes de estarmos encostados à parede, de modo a
negociarmos em posição de força.”
Em Fevereiro de
1985, o presidente Botha oferece a Mandela a liberdade em troca da condenação
da violência. O prisioneiro recusa. Meses mais tarde, propõe-lhe a abertura de
negociações. Recebe a resposta de sempre: “Só os homens livres podem negociar.”
Para Mandela, os
tempos da negociação são uma questão de táctica e não de princípio. Em 1985, é
obrigado a fazer uma cirurgia à próstata num hospital onde é contactado por um
emissário do governo. Em 1986 sente que a situação se tornou favorável e o
problema passa a ser convencer os dirigentes do ANC a aceitarem que ele encete
conversações, o que para muitos era um suicídio político. Mandela assumiu um
incalculável risco, pessoal e histórico, que se falhasse poderia pôr em causa o
futuro do país.
Entre Maio de 1988
e 11 de Fevereiro de 1990, Barnard e Mandela participarão em 48 reuniões
secretas. Outra figura central na negociação é o ministro da Justiça, Kobie
Coetsee.
Em Julho de 1989,
Mandela encontra-se com o presidente Botha. Este fica surpreendido pela
correcção com que o prisioneiro fala afrikaans e pelo seu conhecimento da
História boer. Mandela seguiu sempre um princípio: “Aprende a língua e o jogo
favorito do teu inimigo”.
Prossegue Barnard:
“A regra central de toda a negociação é identificar a pessoa que detém
realmente o poder. E não havia dúvida de que nessa época o poder estava nas
mãos de um homem chamado Nelson Mandela. Se queremos negociar não podemos cair
na facilidade e no erro de escolher uma pessoa dócil, que não batalhará muito
para obter concessões. E Mandela não era fácil. Fixava-se numa linha e nunca se
afastava dela. Sabia mostrar-se intransigente e ter acessos de cólera. Não era
um anjo. (...) Diga-se muito claramente que jamais teríamos chegado a uma
solução negociada sem a participação activa de Nelson Mandela.” Só ele tinha
autoridade para fazer concessões e as impor ao ANC e à população negra.
Uma regra básica da
negociação é evitar que “a outra parte” sinta que perdeu. Ambas as partes têm
de ceder.
4. Em Setembro de
1989, Frederik W. De Klerk substitui Botha e o processo negocial acelera-se.
Mandela fixa os objectivos: a regra democrática “um homem, um voto”; a
legalização do ANC, dos seus aliados — o Partido Comunista e os sindicatos; a
libertação de todos os presos políticos; o desmantelamento dos bantustões. Só
nestas condições, aceita ser libertado – no dia 11 de Fevereiro de 1990 – para
iniciar a grande ronda negocial com o governo de De Klerk.
Até às eleições de
1994, o país vive em convulsão: confrontos sangrentos entre o ANC e o partido
zulu Inkatha, milhares de assassínios, conspirações da extrema-direitabranca.
Mandela torna-se a figura central do país, sendo tratado como se já fosse
presidente. Faça-se também justiça a De Klerk, que manifestou uma excepcional
coragem política.
A batalha que agora
se trava já não é o fim do apartheid. É a da “impossível reconciliação” dos
inimigos, o seu reconhecimento mútuo com parte da mesma nação. “É libertar ao
mesmo tempo opressores e oprimidos, guiar o povo num caminho minado, entre os
temores dos brancos e as esperanças dos negros”, resumiu o romancista André
Brink.
A reconciliação
passa pelo perdão e pelos sinais de confiança. Uma vez Presidente, Mandela
torna-se o grande mestre dos sinais simbólicos. Mantém no seu posto a grande
maioria dos altos funcionários brancos. Visita a viúva de Hendrik Verwoerd, o
arquitecto do apartheid. Faz questão de apertar a mão ao promotor que em 1964
pedira a pena de morte para ele. Garante a propriedade dos brancos. “O seu sorriso
é a mensagem”.
John Carlin
escreveu um livro de que Clint Eastwood fez um filme — Invictus. O título em
português é Conquistando o Inimigo. Mas o original acrescenta um pós-título:
“Nelson Mandela e o jogo que fez uma nação.” No entanto, a nação ainda não está
consolidada. As identidades raciais subsistem mesmo se o racismo foi
ilegalizado. O fim do apartheid deu o poder à maioria e ao ANC, mas não trouxe
o paraíso.
Houve transições
admiráveis — outras “reconciliações impossíveis” — como as da Espanha e da
Polónia, que Mandela muito estudou. Mas a África do Sul, com todas as
convulsões, será a mais impressionante. Para lá da coragem e liderança, Mandela
deixou um derradeiro legado, anota o jornalista e escritor Martin Plaut:
“Talvez o maior presente que ele fez à África do Sul tenha sido o de saber
abandonar o cargo. Ao fazê-lo, provou que este país pode avançar sem ele. Ao
contrário de tantos outros presidentes africanos, não se considerou
indispensável.”
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