Sérgio Soares – Jornal
i
“Deus quis que eu
sobrevivesse. Mas deixou-me com cicatrizes e algum desconforto, dor permanente,
como um pequeno calvário, para o resto da minha vida [...] A vida é tão curta,
frágil, porquê desgastar a vida em zangas e ódios?”
O ex-presidente da
República de Timor-Leste, José Ramos-Horta, assume em Fevereiro, “com
serenidade”, o cargo de representante especial de Ban Ki-Moon na Guiné-Bissau.
Uma missão que muitos consideram quase impossível dada a ausência de um Estado
forte e funcional no país, que cedeu à influência da corrupção e ao controlo
dos traficantes internacionais de droga. Nada que desmotive o Prémio Nobel da
Paz, que quer ajudar o país a sair do “ciclo de instabilidade e de não paz” e
que considera que a Guiné-Bissau “não é uma causa perdida”.
Acaba de ser
escolhido pelo secretário- -geral da ONU para liderar a missão das Nações
Unidas na Guiné-Bissau. Os Estados Unidos e muitas organizações internacionais
dizem que aquele país já é praticamente um narco-Estado. A sua tarefa não está
comprometida à partida?
A produção da droga
não é na Guiné-Bissau. O consumo da droga não é na Guiné-Bissau. Portanto a
comunidade internacional deve encontrar formas de cercear este mal na origem e
no destino. Os nossos irmãos guineenses são afinal vítimas da produção e da
comercialização ilícita da droga. Claro, o problema da Guiné-Bissau não está
apenas na questão da droga. Ela resulta em parte da crise do Estado e das suas
instituições democráticas. Mas a Guiné-Bissau não é a Somália, o Congo, a
Síria. Felizmente. Estou convencido que, com boa vontade, um apoio maior da
União Europeia e dos Estados Unidos, uma melhor parceria, um maior alinhamento
de pensamento e políticas com a União Africana, a CEDEAU e a CPLP, a ONU poderá
ter êxito. Não será uma missão fácil. Óbvio que não.
Conhece bem muitos
dos actores políticos e militares da Guiné-Bissau. Como avalia o conflito
permanente latente no país? É uma questão de rivalidades, ambições pessoais,
questões étnicas? E o seu mandato como representante especial do
secretário-geral da ONU vai permitir-lhe fazer o quê no terreno?
Não vou, nem devo,
adiantar muito em relação ao que poderei fazer no terreno. Primeiro tenho
directivas a ouvir em Nova Iorque, do Departamento de Assuntos Políticos, que
gere o dossiê da Guiné-Bissau. Com os meus colegas em Nova Iorque, ouvindo a
CEDEAO, a União Africana, a CPLP, a União Europeia, teremos um pensamento
comum. Mas acima de tudo serão os nossos irmãos guineenses a dizer e a decidir
do seu futuro. A ONU não se substitui aos líderes nacionais.
Parte com apoios
internacionais variados, até na própria Guiné-Bissau. Mas dado o passado
histórico do país o que o levou a aceitar uma missão em que tantos outros já
falharam? Aborrecia-o não exercer nenhum cargo oficial?
Eu já estava
plenamente activo com uma nova organização não estatal regional, o Asian Peace
and Reconciliation Council (Conselho Asiático para a Paz e a Reconciliação),
lançada em Setembro passado e sedeada em Banguecoque, envolvendo líderes muito
respeitados de toda a Ásia, vocacionada para o diálogo e a mediação de
conflitos na Ásia. Além disso já tinha convites e projectos no Japão, na
Alemanha e na Suíça. Tenho também o projecto de um livro/tese sobre a Ásia –
“Os Desafios do Século XXI para a Ásia”. Pedi aos meus amigos e colegas do
grupo dispensa por um ano e eles anuíram e encorajaram-me a aceitar a missão na
Guiné-Bissau. Dada a história de Timor-Leste com a Guiné-Bissau, eu não poderia
dizer não a um convite da ONU. Timor-Leste muito deve à ONU e, pela minha
experiência, a organização pode ajudar os líderes e o povo da Guiné-Bissau a
sair do ciclo de instabilidade, de não paz...
Como sabe, Portugal
e a comunidade internacional não reconhecem o governo em exercício em Bissau.
Acha que essa situação pode complicar a sua tarefa?
Não. Havemos de
encontrar uma solução.
Enquanto Presidente
da República condecorou o primeiro-ministro deposto, Carlos Gomes Júnior. Este
gesto é agora um obstáculo?
Não o vejo assim.
De que meios dispõe
para fazer aplicar as resoluções da ONU e exercer o seu mandato no terreno?
A ONU disponibiliza
os recursos humanos e técnicos necessários para cada situação, nem sempre
óptimos, mas temos de saber agir e gerir a situação com os recursos que temos e
não com os recursos com que sonhamos. Às vezes exagera-se nos recursos,
recursos a mais, complicam-se as coisas, passamos demasiado tempo a gerir a
situação interna da missão, em vez de prestar atenção à situação no terreno,
para a qual fomos mandatados.
Como encara a sua
primeira prova de fogo, com as eleições na Guiné-Bissau?
Com serenidade.
Falemos do seu
país. Timor-Leste é hoje muito diferente do que era há uma década. Acha que a
democracia e as instituições democráticas já estão convenientemente
consolidadas?
Há sempre
necessidade e espaço para melhorar. As nossas instituições são jovens, logo
frágeis. Mas a cultura democrática está enraizada.
Que balanço faz do
papel de Portugal desde na independência de Timor-Leste?
Timor-Leste estará
para sempre grato e endividado com Portugal, pelo papel central que Portugal
desempenhou com coragem e dignidade na acção diplomática. Mas não poderíamos
nunca minimizar o papel dos países irmãos, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique e São Tomé e Príncipe, o Brasil, que foram a nossa retaguarda segura
na frente diplomática. Aliás, antes de Portugal pegar a sério na questão de
Timor-Leste, e isto só veio a acontecer a partir de 1991, eram esses irmãos da
África que cada ano, na ONU e no Movimento dos Não-Alinhados, asseguravam que a
questão de Timor-Leste não fosse varrida da agenda internacional.
Em que ponto se
encontra o diferendo sobre o petróleo timorense com a Austrália?
Não há propriamente
um diferendo entre a Austrália e Timor-Leste nesta matéria. O consórcio de
investidores na área do Greater Sunrise é um consórcio multinacional de
australianos, americanos, japoneses, etc. O diferendo, para usar a sua
expressão, reside apenas em saber qual a melhor tecnologia, a melhor forma de
explorar aquela região, se por via de um gasoduto para a costa sul de
Timor-Leste, se pelo sistema flutuante (FNLG – Floating Liquidfied Gas). O
diálogo está em curso, e as várias partes vão encontrar uma solução técnica e
comercial com vantagens para todos.
O petróleo também
pode transformar- -se na maldição de Timor-Leste, como aconteceu noutras partes
do mundo?
O petróleo e o gás
estão a contribuir para a modernização da nossa economia, a redução da pobreza,
a melhoria da saúde, da educação, a segurança alimentar. Mas vai levar mais
tempo.
O contributo de
Portugal para o Orçamento do Estado timorense foi significativo, com incidência
no ensino e na difusão da língua e na consolidação das forças armadas. Mas
Portugal atravessa uma profunda crise económico-financeira. Em que pé está a
promessa de ajuda na compra de dívida portuguesa com verbas do fundo soberano
do petróleo?
Houve consenso em
Timor-Leste para se investir na dívida soberana, mas houve mudança de governo
em Portugal, a vinda da troika a Portugal, houve eleições em Timor-Leste, etc.
O que propus na altura seria uma iniciativa conjunta de Timor-Leste com Angola
e Brasil para investimos na compra da dívida soberana portuguesa, com vantagem
para todos.
Em Timor-Leste, o
presidente Ramos-Horta e o primeiro-ministro Xanana Gusmão ensaiaram de certo
modo o modelo seguido na Rússia, de alternância de cargos. Isso não foi um
sinal de fragilidade das instituições?
Bom… eu já não
estou no poder em Timor-Leste.
Como encarou a
derrota nas últimas eleições presidenciais? Não achou que era chegada a hora de
parar? O que tem feito desde que perdeu essas eleições? Politicamente deixa um
legado aos seus sucessores, ou assiste-se a um apagamento da sua passagem pela
administração do país?
Ao soar da
meia-noite de 19 de Maio de 2012 realizou-se a cerimónia de transferência de poderes
do presidente cessante para o novo presidente, seguindo as regras
constitucionais, o calendário constitucional, etc. Foi um acto solene, bonito.
Legado? Se algum legado fica da minha passagem pela presidência, que seja de
uma presidência simples, aberta, acessível, sem arrogância e sem opulência.
Olhando para trás,
foi melhor ministro dos Negócios Estrangeiros, primeiro-ministro ou presidente?
Arrepende-se de alguma coisa que tenha feito ao longo da sua vasta carreira
política?
Deus deu-me algumas
qualidades, virtudes, uma dose mediana de inteligência. Não me fez um Einstein.
Portanto fiz tudo medianamente bem.
Na qualidade de
presidente fez em tempos uma afirmação de apoio à China muito contestada, ao
declarar que reconhecia “legitimidade à soberania chinesa em relação ao
Tibete”. Um Nobel da Paz defender tal ideia causou-lhe alguns amargos de boca?
Sente alguma responsabilidade especial por ser Nobel da Paz?
Não esqueçamos que
não há um único país no mundo que não reconheça a soberania chinesa sobre o
Tibete.
Recentemente disse
a um jornal indonésio que a língua portuguesa recupera pouco a pouco a sua
força em Timor-Leste, graças ao plano de ensino primário apoiado por Portugal e
Brasil. Qual o seu balanço da extensão desse programa?
O português está a
ganhar espaço, cada vez mais. Mas o esforço tem de continuar por mais uma ou
duas décadas, para que o português ganhe raízes irreversíveis em Timor-Leste.
Como timorense, nos
confins da Ásia, como diplomata, qual a sua visão efectiva da CPLP e do seu
papel na lusofonia?
Não devemos ver uma
língua apenas pela sua influência geopolítica. Língua e identidade, cidadania,
história. Timor-Leste formou-se pela colonização portuguesa. Não subestimemos a
CPLP – o Brasil, Angola e Moçambique vão emergir como grandes determinantes
políticos e económicos dadas as enormes riquezas que possuem. Dentro de 10 a 20
anos, estes três países influenciarão as suas regiões de forma determinante,
portanto a CPLP no seu todo sairá reforçada.
A sua longa
carreira política granjeou-lhe seguramente amigos e inimigos. No deve-haver
destes dois grupos, qual é o mais numeroso?
Por mim não tenho
inimigos. Aos que porventura digam que sou seu inimigo responderei são meus
irmãos! Se lhes fiz mal, rogo o seu perdão, pois sou um simples ser humano que
peca e falha. Cristo ensinou-nos a amar e amar significa saber perdoar os que
nos fazem mal. A vida é tão curta, frágil... Porquê desgastá-la em zangas,
ódios?
Que memórias ainda
retém do atentado que sofreu em 2008?
Deus quis que eu
sobrevivesse, mas deixou-me com cicatrizes e algum desconforto, dor permanente,
como um pequeno calvário permanente, para o resto da vida. Levo essa dor todos
os dias, agradecendo a Deus por me ter dado a vida, por me impor esse
sofrimento, para melhor saber apreciar a dádiva da vida.