Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Não tenho qualquer
problema com espaços de comentário televisivo de pessoas que tenham tido
responsabilidades governativas. Tenho dúvidas da sua utilidade informativa, mas
parece indiscutível que têm saída. Entre os comentadores políticos temos quatro
ex-líderes do PSD, um ex-líder do PS, um ex-líder do BE, dois
ex-primeiros-ministros e muitos ex-ministros. Por uma qualquer razão que me
escapa, apenas um levantou grande celeuma, com petições e protestos. Mas
adiante.
O modelo usado na
maioria dos espaços ocupados por estes comentadores é o mesmo: um jornalista
lança os temas, eles comentam. Não é uma entrevista, que seria absurdo, já que
teria de se repetir todas as semanas e a coisa acabaria por se esgotar. Também
não é um modelo de confronto. Marcelo comentou anos na RTP, tendo até, durante
algum tempo, uma excelente jornalista (Flor Pedroso) a chamar-lhe a atenção
para alguma contradição no seu comentário, sem que nunca se tivesse chegado ao
ponto dum enfrentamento ou duma entrevista. O que é natural: ou bem que se tem
um comentador que comenta e o registo é amistoso, ou bem que se tem um
entrevistado que se entrevista e o registo é um pouco mais distanciado, ou bem
que se tem um opositor com que se debate, para o qual se chama um debatente
qualificado, e o registo é mais crispado. Até se pode arriscar, mudar as coisas
e ter comentadores que são tratados com agressividade. Em todos os casos,
mandam as regras que quem ali vai saiba o que o espera. Se não se montam
armadilhas a entrevistados, por maioria de razão não se faz tal coisa a um
comentador da estação. E os telespetadores também é suposto saberem o que é
aquilo a que estão a assistir.
No último domingo
assistimos a um dos momentos mais bizarros do jornalismo nacional. A jornalista
que costuma acompanhar o espaço de comentário de José Sócrates foi substituída
por José Rodrigues dos Santos (e, alternado, João Adelino Faria). Pelo menos de
quinzenalmente, um espaço de comentário passou a ser um espaço de entrevista
agressiva. Mudança para qual o entrevistado evidentemente não tinha sido
prevenido. As coisas não foram tomando esse caminho. Foram planeadas. Era
evidente que o "entrevistador" se tinha preparado, estando munido de
material do "seu arquivo", disse este autor de tantos trabalhos
jornalísticos sobre a política nacional (ironia), que não lhe caiu na mesa à
última da hora. E que não deu ao comentador transformado em entrevistado a
mesma possibilidade de preparação. É que (sei o que digo) a preparação para
fazer um comentário é diferente da preparação para uma entrevista.
Nunca, em anos e
anos de comentário político de Marcelo Rebelo de Sousa ou qualquer outro
ex-dirigente partidário transformado em comentador, tal aconteceu. Muito mais
grave: nunca o atual primeiro-ministro foi entrevistado com tanta agressividade
na RTP. Muito menos foi confrontado, de forma tão sistemática, com as inúmeras
contradições entre o que disse no passado e o que diz agora. Mais estranho
ainda: nunca o anterior primeiro-ministro, o mesmíssimo José Sócrates, foi
entrevistado com esta agressividade na RTP quando exercia funções. O
que só pode querer dizer que a RTP tem mais respeito pelos primeiros-ministros
em funções do que pelas pessoas que convida para ter espaços de comentário na
estação. Mesmo quando a pessoa é a mesma.
Não me custa nada
ver um jornalista a confrontar José Sócrates com as suas incoerências. Com o
que disse no passado e diz no presente, que muitas vezes é diferente. Pelo
contrário, acho muitíssimo justo que isso seja feito. Se lamento alguma coisa,
é não ver o mesmo exercício experimentado com outros ex-políticos comentadores.
E preferia que fosse feito por jornalistas com mais preparação política do que
o cidadão comum, para não passarem pelo desnecessário enxovalho que passou
Rodrigues dos Santos. Até porque algumas dúvidas eram pertinentes. Só faltava o
jornalista conseguir perceber o que estava a perguntar. Sócrates quis regressar
para se bater pelo seu legado político, não vejo mal nenhum que seja
confrontado com ele. O que me parece um pouco estranho é que a RTP o convide
para fazer comentário político - quando era necessário ensombrar Seguro com a
anterior liderança - e, sem aviso nem razão aparente, esse espaço passe a ser,
quando essa função deixa de ser útil ao governo, de julgamento político do comentador.
Sabendo alguma
coisa de jornais e televisões, não tenho qualquer dúvida que José Rodrigues dos
Santos não agiu espontaneamente nem sequer por decisão individual. Tratou-se,
vamos chamar as coisas pelos nomes, de uma encomenda. Basta ver Rodrigues dos
Santos com Morais Sarmento para saber que não se trata de um
"estilo". Mas ainda que se tratasse, esse estilo tem um problema: o
debate agressivo exige muita preparação política. E, quando de um dos lados
está um jornalista, exige uma enorme habilidade para que este não passe a ser
visto pelos telespetadores como uma das partes. No fim, depois de várias
semanas a que Sócrates, com bastante experiência de debate, resistirá
facilmente, será Rodrigues dos Santos que ficará a perder na sua própria imagem
de isenção. Foi ele que subiu a parada. Parece-me que não percebeu bem em que
jogo perigoso se meteu.
Estou-me nas tintas
para a facilidade ou dificuldade que aquele momento teve para Sócrates.
Estou-me ainda mais nas tintas para os amores e ódios que o homem provoca em
tanta gente. Confesso que esta relação passional com os políticos me deixa
sempre indiferente. Interessam-me, isso sim, os jogos políticos que se fazem na
televisão pública nacional. Tenho as minhas teorias. O objetivo do convite
feito a Sócrates para ter um espaço de comentário era fragilizar Seguro o
suficiente para que a sua liderança nunca se impusesse no PS. Era garantir,
através da sombra do ex-primeiro-ministro, um líder fraco na oposição. Não era
dar a Sócrates a oportunidade de ser o ator político com mais influência na
base eleitoral socialista, capaz de dificultar futuros entendimentos do PS com
o PSD.
O papel de Sócrates
está cumprido. Depois de lhe facilitar a vida, agora trata-se de a dificultar.
Há que o empurrar para fora da RTP. Apenas se esquecem de uma coisa: se há
político que não é fácil empurrar é este. Esse é, aliás, um dos segredos da sua
popularidade e da sua impopularidade. E não me parece que Rodrigues dos Santos
chegue para tal empreitada. Mesmo quando o tenta através de uma inaceitável
cilada, oferecendo-se a si próprio a vantagem de não ter previamente dado ao
entrevistado a relevante informação de que iria estar numa entrevista.
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