Estados
Unidos já não são capazes de impor sua ordem. Mas como evitar que seu declínio
resulte num mundo caótico?
Slavoj
Zizek - Outras Palavras - Tradução: Marília Arantes
Conhecer
uma sociedade não significa apenas conhecer as suas regras explícitas. É
preciso saber como aplicá-las: quando utilizá-las, quando violá-las, quando
negar uma chance que nos é oferecida, e quando somos obrigados necessariamente
a fazer algo enquanto pretendemos fazê-lo por livre e espontânea opção.
Considere o paradoxo, no caso, das propostas feitas para que sejam recusadas.
Quando sou convidado para jantar em um restaurante por um tio rico, ambos
sabemos que é ele quem vai pagar a conta, embora eu deva insistir de leve que
podemos dividir – imagine a minha surpresa caso meu tio de repente diga: “está
bem, então, pague a conta você!”
Aconteceu
um problema similar durante os caóticos anos pós-soviéticos sob governo Yeltsin
na Rússia. Embora as regras legais fossem conhecidas e, em boa parte, idênticas
às da União Soviética, uma complexa rede de regras implícitas, não-escritas –
as que sustentavam todo o edifício social -, se desintegraram. Na União
Soviética, se você precisasse de um tratamento hospitalar melhor, assim como um
apartamento melhor, se tivesse alguma reclamação contra as autoridades,
estivesse sendo processado ou quisesse seus filhos admitidos em uma escola de
ponta, era preciso saber das regras implícitas.
Você
precisava compreender a quem deveria se dirigir ou persuadir, e o quê deveria
ou não fazer. Após o colapso do poder soviético, um dos maiores aspectos a
mudar no cotidiano das pessoas comuns foi que estas regras não-ditas
tornaram-se seriamente obscuras. As pessoas simplesmente não sabiam como
reagir, como se referir às regulamentações oficiais explícitas, o que deveria
ser ignorado e até onde a persuasão funcionaria. (Uma das funções do crime
organizado era prover um tipo de Ersatz – um substituto -, da
legalidade. Se você fosse o dono de um pequeno negócio e um cliente lhe
devesse dinheiro, você deveria procurar respaldo de um mafioso, que
cuidaria do problema, já que o sistema legal do Estado era ineficiente.) A
estabilização da sociedade sob o reinado de Putin só se deu, em grande
parte, por causa da transparência no estabelecimento recente de regras
não-escritas. Agora, novamente, a maioria das pessoas pode compreender a
complexa teia de interações sociais.
Na
política internacional, ainda não atingimos este estágio. Voltando aos anos 90,
um pacto silencioso regulamentava as relações entre a Rússia e as grandes
potências Ocidentais. Os Estados do Ocidente tratavam a Rússia como um grande
poder, sob a condição de que ela não agisse enquanto tal. Mas o que acontece
quando a pessoa a quem se fez uma proposta-feita-para-se-recusar, resolve
aceitá-la? E se a Rússia começa a agir enquanto grande potência? Uma situação
como esta é de fato catastrófica, por ameaçar toda a teia de relações
existentes – assim como aconteceu há cinco anos, na Geórgia. Cansada de ser
apenas tratada como superpotência, a Rússia passou a atuar enquanto uma.
Como
isso aconteceu? O “Século Americano” acabou e nós entramos em um período em que
passaram a se formar múltiplos centros no capitalismo global. Nos Estados
Unidos, Europa, China e talvez América Latina, também, os sistemas capitalistas
se desenvolveram com características específicas; os EUA defendem o capitalismo
neoliberal, a Europa, o que restou do Estado de bem-estar social, a China, um
capitalismo autoritário e a América Latina, o capitalismo populista. Desde que
a tentativa dos Estados Unidos de se imporem enquanto superpotência hegemônica
– polícia do mundo – faliu, existe a necessidade de se estabelecer novas regras
para interação entre estes centros locais, conforme o que diz respeito a seus
interesses divergentes.
É
por isto que os nossos tempos são potencialmente mais perigosos do que parecem.
Durante a Guerra Fria, as regras para o comportamento internacional eram
claras, e garantidas pela loucura – da destruição mútua assegurada– pelas
superpotências. Quando a União Soviética violou as tais regras não-escritas ao
invadir o Afeganistão, ela pagou seriamente pela infração. A Guerra no
Afeganistão foi o começo de seu próprio fim. Atualmente, velhas e novas
superpotências estão se testando umas às outras, tentando impor suas próprias
versões das regras globais, experimentando abordagens aos mais próximos – que,
é claro, são outras, nações e estados menores.
Karl
Popper certa vez defendeu o exame científico de hipóteses, afirmando que
assim permitimos que nossas hipóteses morram, em vez de morrermos nós mesmos.
Mas, nos testes realizados hoje em dia, as pequenas nações ganham mais mortos e
feridos do que as grandes – primeiro foi a Geórgia, agora a Ucrânia. Embora os
argumentos oficiais sejam altamente moralistas, defendam os direitos humanos e
a liberdade, a natureza do jogo é clara. Os acontecimentos na Ucrânia parecem
algo como a “Crise da Geórgia – Parte II” – o próximo estágio da luta por
controle em um mundo não-regulamentado, multipolarizado.
Sem
dúvida, é hora de ensinarmos a estas superpotências, velhas e os novas, algumas
boas-maneiras [regras de conduta], mas quem fará isto? Obviamente, apenas uma
entidade transnacional poderia mediar isto – há mais de 200 anos, Immanuel Kant
enxergou a necessidade de uma ordem legal internacional que fosse capaz de permear
o apogeu das sociedades globalizadas. Em seu projeto pela paz perpétua,
escreveu: “Desde que uma comunidade mais estreita e mais ampla entre povos do
mundo tenha se desenvolvido a ponto que a violação dos direitos em uma
localidade do mundo seja sentido nas demais, a ideia de que exista uma lei
mundial de cidadania não seria mero devaneio ou noção exagerada.”
Isto,
no entanto, nos leva ao que é discutivelmente a “principal contradição” da nova
ordem mundial (se ainda pudermos utilizar o velho termo maoísta): a
impossibilidade de criarmos uma ordem política mundial que seja capaz de
corresponder com a economia capitalista globalizada.
Mas
e se, por razões estruturais, e não somente devido a limitações empíricas, não
seja possível existir uma democracia amplamente difundida ou um governo
representativo mundial? E se a economia do mercado global não puder ser
organizada diretamente como uma democracia liberal, global com eleições em
nível mundial?
Na
era de globalização, estamos pagando o preço desta “principal contradição”. Na
política, antigas fixações, em particular, questões substancialmente étnicas,
religiosas e de identidade cultural voltaram como vingança. Nosso dilema é
definido por sua tensão: à livre circulação global de commodities seguem
crescentes separações na esfera social. Desde a queda do muro de Berlim e o
apogeu do mercado global, novos muros começaram a emergir por todas as partes,
segregando pessoas e suas culturas. Talvez a sobrevivência crucial da
humanidade dependa da resolução desta tensão.
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