Pedro
Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião
É
estranho e inquietante que a Lei Fundamental se tenha transformado num dos
temas mais acalorados do debate político quotidiano. E é surpreendente que esta
nova paixão ignore fronteiras para se tornar na polémica do dia, em Portugal ou
nos Estados Unidos da América.
De
tais perplexidades dava conta nas páginas deste Jornal, há quinze dias, sob o
título: "Os novos bárbaros". Aconteceu que, por amável convite do Dr.
Fernando Vilas Boas, fui a Celorico de Basto, na passada terça-feira, para
fazer uma conferência no Rotary Club sobre a atualidade da Constituição
portuguesa e foi inevitável ali retomar o curso destas reflexões. Sendo os
textos das constituições portuguesa e americana tão diferentes, tão distantes
no tempo e no espaço, não serão com certeza os seus traços singulares o motivo
desta disputa comum.
De
facto, o que verdadeiramente está em causa, de um e outro lado do Atlântico, é
o reconhecimento do estatuto da Constituição enquanto Lei Fundamental. Na
América, através de uma operação de redução da Lei Fundamental à interpretação
restritiva que dela faz uma corrente jurisprudencial hoje dominante no Supremo
Tribunal Federal, subscrita por uma maioria tangencial dos seus juízes. Em
Portugal, através de uma maioria conjuntural que ganhou as eleições legislativas
de 2011, é o Tribunal Constitucional que é transformado em bode expiatório por
aplicar na interpretação da nossa Constituição os parâmetros hermenêuticos
comuns às "nações civilizadas", em deliberações normalmente
subscritas por unanimidade ou pela larga maioria dos seus juízes. E tanto cá
como lá, a subversão da ordem constitucional concentra-se no ataque aos
direitos, ao princípio da igualdade, às condições de trabalho e à dignidade dos
trabalhadores, ao serviço dos interesses da nova oligarquia internacional
promovida pela "desregulação" e a globalização económica e
financeira.
A
derradeira garantia de todos os nossos direitos está na Constituição da
República que os enumera, define o seu conteúdo e nos responsabiliza a todos e,
em especial, a totalidade dos órgãos de soberania, pela sua efetiva proteção.
Por isso mesmo, a Constituição prevê também as situações extraordinárias que
poderão justificar "a suspensão do exercício" dos nossos direitos,
"nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de
grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de
calamidade pública" (n.º 2, artigo 19.º). Salvo em caso de guerra
declarada, a suspensão do exercício dos direitos é limitada a um período máximo
de quinze dias, sem prejuízo de eventual prorrogação por lei. Contudo, em
nenhum caso poderão ser afetados os direitos à vida e à integridade física, a
liberdade de consciência ou de religião, a capacidade civil, a proibição da
retroatividade da lei penal ou os direitos de defesa dos acusados em processo-crime. E ,
além de tudo, a aplicação destas medidas pelas autoridades tem como única
finalidade legítima o "pronto restabelecimento da normalidade
constitucional".
Giorgio
Agamben publicou em 2004 um livro célebre, que intitulou "Estado de
exceção", e onde procura demonstrar como, ao longo do século XX, o
conceito de "estado de exceção" - contraposto ao "estado de
direito" e neste consentido apenas de forma temporária e parcial, como
determina a Constituição - se foi tornando "permanente" e acabou por
se transformar num novo modo de governo e numa nova ordem mundial, onde o
direito foi substituído pela força e se instaurou uma "guerra civil
generalizada". Em nome da "luta contra o terrorismo" ou da "vontade
dos mercados", em nome do "uso da força" à sombra de alegados
intuitos humanitários, em nome dos credores das "dívidas soberanas",
esmagam-se quotidianamente os direitos, as liberdades individuais, a vontade
democrática e a soberania dos estados.
O
bombardeamento dos hospitais da Faixa de Gaza, a mando do Governo de Israel,
são a mais pungente ilustração e uma sangrenta metáfora do estado a que
chegamos.
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