sexta-feira, 25 de julho de 2014

ESTADO DE SÍTIO



Pedro Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião

É estranho e inquietante que a Lei Fundamental se tenha transformado num dos temas mais acalorados do debate político quotidiano. E é surpreendente que esta nova paixão ignore fronteiras para se tornar na polémica do dia, em Portugal ou nos Estados Unidos da América.

De tais perplexidades dava conta nas páginas deste Jornal, há quinze dias, sob o título: "Os novos bárbaros". Aconteceu que, por amável convite do Dr. Fernando Vilas Boas, fui a Celorico de Basto, na passada terça-feira, para fazer uma conferência no Rotary Club sobre a atualidade da Constituição portuguesa e foi inevitável ali retomar o curso destas reflexões. Sendo os textos das constituições portuguesa e americana tão diferentes, tão distantes no tempo e no espaço, não serão com certeza os seus traços singulares o motivo desta disputa comum.

De facto, o que verdadeiramente está em causa, de um e outro lado do Atlântico, é o reconhecimento do estatuto da Constituição enquanto Lei Fundamental. Na América, através de uma operação de redução da Lei Fundamental à interpretação restritiva que dela faz uma corrente jurisprudencial hoje dominante no Supremo Tribunal Federal, subscrita por uma maioria tangencial dos seus juízes. Em Portugal, através de uma maioria conjuntural que ganhou as eleições legislativas de 2011, é o Tribunal Constitucional que é transformado em bode expiatório por aplicar na interpretação da nossa Constituição os parâmetros hermenêuticos comuns às "nações civilizadas", em deliberações normalmente subscritas por unanimidade ou pela larga maioria dos seus juízes. E tanto cá como lá, a subversão da ordem constitucional concentra-se no ataque aos direitos, ao princípio da igualdade, às condições de trabalho e à dignidade dos trabalhadores, ao serviço dos interesses da nova oligarquia internacional promovida pela "desregulação" e a globalização económica e financeira.

A derradeira garantia de todos os nossos direitos está na Constituição da República que os enumera, define o seu conteúdo e nos responsabiliza a todos e, em especial, a totalidade dos órgãos de soberania, pela sua efetiva proteção. Por isso mesmo, a Constituição prevê também as situações extraordinárias que poderão justificar "a suspensão do exercício" dos nossos direitos, "nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública" (n.º 2, artigo 19.º). Salvo em caso de guerra declarada, a suspensão do exercício dos direitos é limitada a um período máximo de quinze dias, sem prejuízo de eventual prorrogação por lei. Contudo, em nenhum caso poderão ser afetados os direitos à vida e à integridade física, a liberdade de consciência ou de religião, a capacidade civil, a proibição da retroatividade da lei penal ou os direitos de defesa dos acusados em processo-crime. E, além de tudo, a aplicação destas medidas pelas autoridades tem como única finalidade legítima o "pronto restabelecimento da normalidade constitucional".

Giorgio Agamben publicou em 2004 um livro célebre, que intitulou "Estado de exceção", e onde procura demonstrar como, ao longo do século XX, o conceito de "estado de exceção" - contraposto ao "estado de direito" e neste consentido apenas de forma temporária e parcial, como determina a Constituição - se foi tornando "permanente" e acabou por se transformar num novo modo de governo e numa nova ordem mundial, onde o direito foi substituído pela força e se instaurou uma "guerra civil generalizada". Em nome da "luta contra o terrorismo" ou da "vontade dos mercados", em nome do "uso da força" à sombra de alegados intuitos humanitários, em nome dos credores das "dívidas soberanas", esmagam-se quotidianamente os direitos, as liberdades individuais, a vontade democrática e a soberania dos estados.

O bombardeamento dos hospitais da Faixa de Gaza, a mando do Governo de Israel, são a mais pungente ilustração e uma sangrenta metáfora do estado a que chegamos.

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