As
leis que visam punir os sem-abrigo por estes viverem na rua estão a
multiplicar-se. Ou são passeios que ganham “obstáculos” que os impedem de ali
permanecer ou são multas e penas de prisão, bem ao jeito americano, país com
tradição neste tipo de abordagem. De forma gradual, alguns países europeus
começam a seguir esta tendência. Todavia, também existem novas e honrosas
excepções, nas quais Portugal está incluído
Proliferam as notícias
sobre nações que tomaram medidas chocantes de criminalização dos sem-abrigo,
penalizando aqueles que fazem da rua a sua casa (como se viver desta forma não
fosse uma sanção suficientemente forte). Estas estratégias estão a ser
adoptadas por governantes de alguns países, que pretendem “mascarar” as
cidades, tornando-as aparentemente mais “limpas”, mas que não resolvem o
problema da mendicidade.
Questionar
estas medidas é pertinente, tendo em conta que uma das principais consequências
da crise é precisamente o aumento da pobreza, e que a rua é um destino comum a
um número crescente de pessoas que deixaram de poder pagar as suas contas.
Esperava-se, desta forma, que os governos estivessem mais sensibilizados e
disponíveis para dar apoio aos mais carenciados, e não o oposto. Perguntamos
como e por que motivo é que estas normas são aprovadas, numa Europa
aparentemente civilizada e que respeita os direitos humanos, fazendo deles
tantas vezes uma bandeira.
Estas
medidas, que em tempos foram tomadas de forma subtil pelos Estados, e que
proíbem actos tão simples como comer na rua, guardar objectos pessoais em
espaços públicos ou até distribuir comida [a quem dela precisa], têm vindo a
ser cada vez mais “populares” e implementadas sem rodeios e sem receio de
olhares reprovadores. Penalizar quem dorme na rua, proibir quem recolhe lixo ou
distribui comida, ou determinar horários ou locais onde há tolerância para
estas acções, são medidas discriminatórias e que violam os direitos humanos,
independentemente do tipo de sanção para quem as contraria. Terão os
governantes perdido o pudor em seguir a “tolerância zero”, tão apoiada, por
exemplo, nos Estados Unidos da América?
Atenta
a este facto, que apesar de já não ser novo vê renovada a sua actualidade à
medida que são implementadas mais medidas desta natureza, a Federação
Europeia de Organizações Nacionais que trabalham com Sem-Abrigo (FEANTSA)
apresentou, em finais de 2013, o primeiro “Relatório sobre
a criminalização dos sem-abrigo na Europa”, juntamente com a Housing Rights Watch e com a Fondation Abbé Pierre.
Segundo
esta organização, os sem-abrigo devem ser reconhecidos como os principais
protagonistas do seu próprio desenvolvimento, e não como receptores passivos de
produtos e serviços. As estratégias governamentais devem chamar os sem-abrigo a
participar activamente na sociedade, encorajando o desenvolvimento dos direitos
humanos e dando-lhes a oportunidade de fazerem algo pelas próprias vidas.
O
perigo de se voltar ao passado
No entanto, em alguns países a realidade é bem diferente. À medida que são tomadas estas decisões repressivas, cuja maior e mais ingrata consequência se traduz no aumento da dificuldade das organizações sem fins lucrativos em chegar aos sem-abrigo, perpetuando esta sua condição, os decisores políticos mais não fazem do que violar os direitos humanos, que têm por base, como sabemos mas que nunca é demais recordar, a não-discriminação e o igual tratamento de todos, castigando de forma cruel aqueles que já vivem em fragilidade económica e social.
Relativamente
a esta problemática, a Hungria é o país que mais preocupa a FEANTSA. Num país
em que existe uma “cultura” de criminalização subtil das populações
desfavorecidas e onde existem estratégias de combate à marginalização, a
extrema-direita (que subiu recentemente ao poder) não tem tido pudor em
repreender “às claras” aqueles que, em Budapeste, usam o espaço público para
viver, atribuindo-lhes multas de 530 euros ou 60 dias de prisão. E as previsões
apontam para que esta medida chegue a outros pontos do país.
Contudo,
o último exemplo conhecido vem do norte da Europa, ou da região “mais
civilizada”do continente, nomeadamente da Noruega, onde o governo tem tentado
aprovar e manter em vigor uma lei que proíbe a mendicidade. A preocupação do
executivo norueguês é consequência do fluxo migratório de comunidades ciganas
romenas, vistas como “perigosas” para uma população habituada a elevados níveis
de prosperidade. O ministro da Justiça, Anders Anundsen, fala de uma “relação
entre a mendicidade e o crime”, dado o aumento da violência, de roubos e de
outros episódios criminosos nos últimos tempos.
A
Noruega é uma nação onde a mendicidade tem pouca expressão, talvez devido à
existência, durante largos anos, de uma lei que a proibia, e que foi revogada
em 2006, com o argumento de ser preferível deixar os toxicodependentes pedirem
esmolas na rua do que incentivá-los a roubar. A insistência para que esta lei
volte a vigorar pode, assim, significar um passo atrás no respeito pela
dignidade humana.
Sendo
possível elencar dezenas de exemplos do início do nosso século para mostrar que
não é o aumento de pessoas sem casa, consequência da crise, que justifica estas
medidas é, contudo, pertinente recuar ainda mais, fazendo-se um paralelismo
que, à primeira vista, pode ser considerado exagerado. Em 1935, as Leis de
Nuremberg, como assim ficaram conhecidas, também foram criadas com o
propósito de “limpar” as cidades, (neste caso, da Alemanha) de pessoas
indesejadas (judeus, ciganos e outras etnias “menores”), “arianizando-as”.
E,
como sabemos, para serem perseguidos, bastava que estes cidadãos tivessem
ascendência judaica. Estas leis de perseguição eram constituídas por um
conjunto de três textos (a Lei da Bandeira do Reich, a Lei da Cidadania do
Reich e a Lei da Proteção do Sangue e Honra Alemães) e reuniam, no geral, toda
a ideologia nazi meticulosamente preparada para “eliminar” os indivíduos que,
apesar de alemães, pertenciam a uma “categoria de segunda”.
As
medidas recentemente implementadas pela Noruega e pela Hungria (e,
crescentemente, por outros países da Europa) relembram as “operações de
limpeza” que haveriam de resultar em milhões de mortes e fugas e, não sendo
provável que estas atrocidades se repitam, nunca é demais estar atento para
alguns sinais preocupantes. Adicionalmente, multar e punir os sem-abrigo apenas
vai perpetuar a mendicidade e mostrar a quem se encontra nesta situação que não
tem o direito de confiar nos seus governantes.
A
FEANTSA e os seus membros defendem que os sem-abrigo são pessoas com direitos
iguais a qualquer outro cidadão. Esta organização dá especial atenção aos
direitos de inclusão e cidadania, dignidade e respeito, privacidade, segurança
e tomada de decisões que os afectem. Considera igualmente que estes têm o
direito a usufruir de serviços acessíveis que lhes dêem a possibilidade de
satisfazer as suas necessidades e aspirações.
“Limpar”
as ruas e não os que nelas dormem
Diferente de punir a mendicidade é combatê-la, dando aos sem-abrigo soluções e propostas que lhes permitam ultrapassar a situação em que se encontram. Punir significa castigar alguém pela adopção de uma má conduta ou de um comportamento desviante, ou seja, é a consequência de um acto. Já combater a mendicidade significa dar ferramentas, incentivar a mudar e a querer fazer mais, aumentando a auto-estima dos sem-abrigo e mostrando-lhes formas de se valorizarem.
É
desta forma que realmente se “limpam” as cidades (porque estas pessoas ganham
coragem para mudar de vida) e não apenas se mascaram as ruas (obrigando-as a
procurarem locais mais recônditos). Não é uma tarefa fácil e requer
investimento por parte dos Estados e o contributo das organizações, mas é uma
solução mais viável.
O
projecto Housing
First é um exemplo de uma boa prática, que se tem tornado popular na
Europa, o qual consiste na atribuição, aos sem-abrigo, de casas que lhes
permitem sair da rua ou dos albergues onde pernoitam. Oferecer uma casa não
significa apenas dar a possibilidade de dormir numa cama, em segurança. Simboliza
principalmente uma viragem na vida destes cidadãos, em direcção à autonomia e à
estabilidade. Ao terem as chaves de uma casa, estas pessoas voltam a ser donas
de si próprias e ganham uma motivação ainda maior para procurarem um emprego:
ganham, acima de tudo, a vontade de voltar a cuidar de algo e de decidirem o
futuro e o rumo das próprias vidas.
No
entanto, este é um processo lento e que requer força de vontade e sentido de
compromisso. Desta forma, é fundamental um acompanhamento permanente, com
técnicos atentos às necessidades individuais dos novos “residentes”. Um outro
princípio do realojamento está relacionado com a inserção e integração destes
indivíduos nas comunidades, incentivando-os a participarem em actividades
variadas e a partilharem as suas experiências com os vizinhos, tendo em conta
que o isolamento social pode facilmente retirar-lhes a vontade de mudar de
vida, levando-os de novo à mendicidade e às ruas.
Este projecto surgiu
em 1992 em Nova Iorque ,
com a denominação Pathways to Housing (Caminhos para Casa em tradução livre) e
o seu principal objectivo era o de alojar pessoas sem-abrigo e com doença
mental grave, mas depressa foi implementado em outros locais e adaptado a
pessoas que vivem noutras condições igualmente precárias e com outro tipo de
necessidades. A Austrália e o Canadá são dois países onde a sua implementação
tem sido bem-sucedida.
A Comissão Europeia também
“adoptou” esta iniciativa e construiu um modelo adaptado à
realidade do nosso continente. O primeiro projecto-piloto foi implementado
nos Países Baixos, em 2006 e, desde então, tem vindo a crescer e a ganhar
visibilidade, sendo encarado como uma forma eficaz de combater este flagelo.
Actualmente existe em países como a Dinamarca, a Finlândia, a Escócia, a Hungria e até Portugal. No nosso País, este projecto denomina-se Casas Primeiro e segue a versão americana de integração de pessoas sem-abrigo e com doença mental e está a ser implementado em Lisboa através da Associação para o Estudo e Integração Psicossocial(AEPIS).
Actualmente existe em países como a Dinamarca, a Finlândia, a Escócia, a Hungria e até Portugal. No nosso País, este projecto denomina-se Casas Primeiro e segue a versão americana de integração de pessoas sem-abrigo e com doença mental e está a ser implementado em Lisboa através da Associação para o Estudo e Integração Psicossocial(AEPIS).
Um
outro exemplo bem diferente do anteriormente referido pretende conferir aos
sem-abrigo ferramentas e capacidades, através da fotografia. Com o argumento de
que não devem ser negadas oportunidades a ninguém, as fundadoras do PhotoVoice, Anna Blackman e Tiffany
Fairey, criaram este programa para, através das imagens, dar voz a pessoas
carenciadas e promover mudanças sociais. Reconhecido desde 2003 como uma ONG, o
projecto utiliza uma metodologia inovadora que estimula a criatividade e a
autoconfiança, sempre acompanhadas de conhecimentos técnicos e de ferramentas
que permitem exercer uma profissão nesta área.
A
opção pela fotografia foi feita tendo em conta que esta é uma forma simples de
comunicar, sem barreiras linguísticas, permitindo contar histórias, relatar
factos, marcar posições e mostrar diversas realidades ou perspectivas. Este
projecto existe no Reino Unido e tem ganho vários prémios, sendo reconhecida a
sua acção enquanto ferramenta de comunicação, expressão e veículo de mudança
social.
A
principal diferença entre os dois projectos apresentados – Housing First e
PhotoVoice – reside no facto de o primeiro “oferecer” aos sem-abrigo uma casa
e, posteriormente, promover o desenvolvimento das suas competências, enquanto
que o segundo confere as competências adequadas para que, através delas, estas
pessoas possam ganhar autonomia e ter um lar. Ambos pretendem, no fundo,
promover a igualdade social e acabar com a discriminação, oferecendo, a quem
vive com carências económicas e sociais, uma oportunidade de voltar a ter
estabilidade e autoconfiança. Ambos os projectos pretendem pôr fim à
marginalidade e à marginalização, mas sem punições e com ferramentas e
oportunidades.
Portugal
no bom caminho
Em Portugal, são várias as iniciativas que têm vindo a ser implementadas com o objectivo de combater a marginalidade. Estamos já habituados a estar na cauda da Europa em diversas situações e pelos mais variados motivos, mas podemos orgulhar-nos de, neste aspecto, a realidade ser ligeiramente melhor. A crise tirou a casa a muitas pessoas, que perderam o emprego e passaram a (tentar) sobreviver do Rendimento Social de Inserção e da boa vontade de familiares e amigos. Muitas dessas pessoas não têm resistido e viram-se já obrigadas a abandonar o que demoraram anos a construir.
Considerando
que o direito à habitação está consagrado na Constituição da República
Portuguesa, a Segurança Social criou a Estratégia
Nacional para Integração de Pessoas Sem Abrigo (ENIPSA) 2009-2015.
Esta visa dar resposta aos problemas sociais e criar políticas que previnem
situações de exclusão social, criando condições para que ninguém tenha de viver
na rua por falta de alternativas.
Os
albergues nocturnos constituem uma forma rápida e temporária de dar às pessoas
em situação de sem-abrigo a possibilidade de dormirem numa cama, mas não são,
nem pretendem ser, uma solução para este problema. A ENIPSA, por oposição,
pretende abordar a mendicidade de uma forma mais aprofundada e abrangente,
intervindo em diferentes causas e junto de diversos parceiros. Os signatários
desta estratégia defendem a adopção de medidas no âmbito da prevenção, intervenção
e acompanhamento de forma inter-institucional e multidisciplinar, não
esquecendo “a diversidade e complexidade das situações e dos mecanismos que
conduziram a esta etapa de marginalização extrema”.
Esta
estratégia pretende actuar em dois eixos fundamentais: o primeiro está
relacionado com o conhecimento permanente e actualizado do fenómeno da
mendicidade, com vista à sensibilização e educação da comunidade, promovendo a
utilização de um conceito único de “pessoa sem-abrigo” para evitar interpretações
diversas e dispersão de recursos; o segundo eixo visa garantir a qualidade
técnica da intervenção, para que esta seja mais eficaz e eficiente e para que
tenha resultados a longo prazo e não apenas de forma imediata.
Até
2015, está prevista a criação de centros de alojamento temporário, com vista à
satisfação das necessidades básicas e de apoio imediato (como a saúde ou o
contacto com a família), mas também de apartamentos partilhados que vão
possibilitar o desenvolvimento de competências de gestão doméstica e a busca
activa de alojamento próprio.
Outros
objectivos estão relacionados com o reforço das equipas de rua e de intervenção
directa, as quais estabelecem o contacto com as pessoas em situação de
sem-abrigo, identificam as suas necessidades e promovem a sua inserção na
sociedade. É importante também, para esta estratégia, a existência de equipas
especializadas (e o reforço das que já actuam) que acompanhem especificamente
pessoas com doença mental e consumidores de substâncias psicoactivas.
Apesar
de esta estratégia estar ainda a ser desenvolvida, existem outros projectos que
têm vindo a ser implementados com vista à integração e inserção das pessoas em
situação de sem-abrigo (o projecto Casas Primeiro é apenas um exemplo). A
estratégia da Segurança Social é um (bom) exemplo da posição que o nosso País
pretende assumir: combater a mendicidade, apoiando a integração dos sem-abrigo,
e não punir estas pessoas através de multas ou penas de prisão.
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