quarta-feira, 6 de agosto de 2014

MÉDICO BRASILEIRO ENFRENTA ÉBOLA NA SERRA LEOA



Rui Martins, de Genebra com Serra Leoa – Correio do Brasil

O médico brasileiro Paulo Sérgio Leal Reis, formado pela UniRio, trabalhou com os índios no norte do Brasil e, faz 10 anos, trabalha com a organização internacional Médicos sem Fronteiras em missões diferentes. Ele está num centro de atendimento da MSF em Serra Leoa, enfrentando o vírus Ebola.

O número de mortos no pior surto de Ebola no mundo subiu, nesta quarta-feira, para 932, depois que 45 pacientes morreram entre 2 e 4 de agosto, informou a Organização Mundial de Saúde (OMS) em um comunicado nesta quarta-feira.

Com 108 novos casos suspeitos, prováveis ​​ou confirmados no mesmo período, o número total chega a 1.711. Das mortes recentemente notificadas, 27 foram na Libéria, que teve 516 casos e 282 mortes pela doença desde que o surto começou, em fevereiro.

A Guiné, onde foi identificado o primeiro foco, teve 10 novos casos e 5 mortes, enquanto em Serra Leoa, 45 novos casos aumentaram o número total para 691, com 13 mortes recentemente notificadas, elevando o número de mortos no país para 286.

Na Nigéria, o quarto país a ser afetado, o número de casos suspeitos subiu de 4 para 9. Os dados da OMS incluem uma morte na Nigéria, de um homem que passou mal ao chegar no país de avião, em um voo que saiu da Libéria, via Gana e Togo.

Uma enfermeira que tratou dele também morreu, disse o ministro da Saúde da Nigéria nesta quarta-feira. Os números da OMS não fazem menção à Arábia Saudita, onde um homem morreu na quarta-feira depois de voltar de uma viagem de negócios em Serra Leoa.

A OMS reúne um Comitê de Emergência na quarta e na quinta-feira para decidir se o surto constitui uma emergência de saúde pública de alcance internacional e, em caso afirmativo, o que fazer sobre isso.

A diretora-geral da organização, Margaret Chan, informou representantes nacionais na terça-feira, segundo um comunicado da OMS, e esboçou uma ação tripla: intensificação das medidas nos quatro países afetados, medidas para reduzir a propagação internacional, e o tratamento de uma área da África Ocidental como um “setor unificado”.

Essa área -na fronteira de Serra Leoa, Guiné e Libéria- estaria sujeita a “medidas de saúde pública destinadas a reduzir o movimento dentro e fora da área”, disse o comunicado.

Leia, a seguir, a entrevista exclusiva com o médico Paulo Sérgio Leal Reis

– Quais as maioras dificuldades no terreno ?

– Podemos dividi-las em dois grupos : um é em relação a comunidade, que não tem muita informaçao e tem muito medo e desconfiança, e isso dificulta o acesso e detectar os caos de Ebola, dificultando controlar essa epidemia. A outra dificuldade é nossa relação com os próprios pacientes, pois temos de usar uma roupa de proteção muito forte, que dificulta nosso trabalho. a roupa de proteção não permite que fiquemos muito tempo no isolamento com os pacientes, não permite que façamos um exame melhor do paciente e o tratamento fica dificil.

– Quanto tempo o senhor aguenta ficar com essa roupa de astronauta ?

– Isso depende se o dia está quente ou não. Num dia não muito quente é de uma hora. Mas se um dia quente, em uma hora já fico completamente esgotado. O pessoal que vem de fora fica geralmente doze horas por dia, com intervalos para se recuperar. Podemos recomeçar 3 a 4 vezes, mas o pessoal nacional faz umas duas entradas por turno.

– Um médico disse na televisão que seria preciso se mudar os hábitos culturais pois a infecção ocorre no enterro ou quando visitam os doentes, é isso ?

– Realmente, a influencia dessa parte cultural é muito grande, eu não diria que se precisa mudar os hábitos culturais mas ensinar as pessoas que nesses momentos é preciso se mudar o hábito tradicional. Se não conseguirmos mudar os hábitos não teremos como controlar a propagação da doença. Uma grande parte dos pacientes se infecta na fase funerária, quando se enterram os mortos por Ebola.

– Um cientista disse que a propagação dessa epidemia vai ser como fogo na floresta, existe realmente esse risco?

– O risco existe, é real em termos regionais , em termos desta parte da África e da África em geral a epidemia está se espalhando e vai se espalhar mais ainda. Mas o risco que se espalhe para a Europa é pequeno e poderão se registrar apenas casos isolados que serão rapidamente controlados, sem impacto em termos de saúde pública.

– Mas e se o vírus chegasse às periferias pobres das cidades europeias e nas favelas brasileiras e latino-americanas, com pobreza semelhante à da África, não se propagaria?

– Não, mesmo no Brasil nas áreas bem pobres a mentalidade é um tanto diferente e a pessoa que morresse poderia infectar no máximo uma ou duas pessoas rapidamente isoladas. Por isso, saindo destas regiões não vejo muito risco para se espalhar para outros países com uma estrutura um pouco mais organizada.

– Ao nível da infecção, isso vem do morcego frutívoro e das frutas que ele infecta, mas igualmente dos próprios morcegos que os seres humanos comem um tanto cru, mal assado, é isso?

– O reservatório inicial do vírus não está ainda muito claro mas parece ser o morcego. A contaminação das frutas é pouco provável, não está muito claro. O mais provável está no consumo do próprio morcego, que também comem, ou por comerem o macaco contaminado pelo morcego. Não exatamente por ter comido as frutas mordidas pelo morcego. Acho que está mais relacionado com a infecção do macaco pelo morcego.

– E como está o contágio homem para homem?

– O contágio homem para homem existe mas só pode ser direto, não se trata de um vírus que se propaga pelo ar, não é um vírus que se adapta rapidamente é um vírus muito estável já com uns dois mil anos e que não muda. Eu acredito que não existe risco de mutação. O contágio continua sendo o contato direto com uma pessoa infectada.

– O senhor acha que na África existe o risco de ocorrer como aconteceu com a Peste na Europa, quando morreram milhões de pessoas?

– Não acredito que morram tantas pessoas quanto na Europa devido à característica do virus e maneira de transmissão, mas certamente vai se espalhar e vai matar muias pessoas, quanto a isso não dúvida. Se não houver intervenção de órgãos governamentais e não governamentais é certo que essa epidemia vai continuar. Vai ser preciso muito esforço para se impedir que ela continue avançando.

– No contato com os humanos, o vírus perde a força e os próximos humanos se imunizem naturalmente?

– Não, o corpo humano por si só não teria a capacidade de adaptação a esse virus, mas é possível que se faça uma vacina. Sabemos que a pessoa por vírus cria anticorpos e fica por eles protegida, mas não se sabe se essa proteção dura toda a vida. Em todo caso, sabemos que uma vacina seria possível com investimentos e pesquisas.

– Houve um filme Outbreaks, com Dustin Hoffman, sobre um vírus que ameaçava a humanidade a ponto do exército estar disposto a matar os infectados. Pode acontecer algo assim ?

– Eu penso que não, mas é muito difícil se prever com vão reagir as pessoas. Aqui as pessoas ficam com medo e em algumas famílias até expulsam os infectados mas em termos de militares ou governo eu acho muito difícil, mesmo porque as pessoas podem esconder para fugir à ameaça. Ameaçar as pessoas não funciona o que funciona é deixar as coisas bem claras.

– Qual é a diferença dessa epidemia de agora com as outras, por que esta parece mais ameaçadora?

– As outras ocorreram em lugares isolados, onde as pessoas tinham dificuldade para viajar e logo foram localizadas. Porque se os casos foram logo identificados não se espalham. Agora, os casos ocorreram numa região menos isolada onde as pessoas viajam muito, numa fronteira de três países. E quando Ebola foi identificado já tinha se espalhado e já tinha saído da área central.

– O senhor lembrou que as famílias expulsam os mortos mas há também a tradição de se lavar os mortos…

– Sim existe essa tradição de se lavar o corpo antes de se enterrar e convidar toda família para se reunir antes de enterrar. E isso pode levar uma semana e se torna ponto importante na contaminação das pessoas. No caso são cristão que esperam a família para enterrar, os muçulmanos enterram nas 24 horas seguintes da morte.

Rui Martins, correspondente em Genebra

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