terça-feira, 26 de agosto de 2014

Portugal: DECÊNCIA



António Cluny – jornal i, opinião

O que importa é algo mais: rever toda a filosofia política e administrativa de relacionamento entre interesses públicos e privados

Os episódios da vida económica e financeira portuguesa revelados ultimamente obrigam-nos a reflectir com acuidade sobre a sociedade em que vivemos e na que queremos viver.
Nessa reflexão, não importa já situar a questão na tradicional divisão partidária de esquerda e direita. Essa fronteira existe e sempre existirá.

Do que se trata, neste momento, é de unir os que querem viver numa sociedade decente e livre da constante pressão da corrupção ou da captura dos meios, poderes e fins do estado para viabilizar negócios cujo interesse é puramente egoísta.

Trata-se, exactamente, da sobrevivência da comunidade nacional.

Nesta preocupação, tanto se encontram pessoas que se consideram de direita como de esquerda, mas que, em conjunto, se recusam a alienar o estado, como instrumento de bem comum, a soberania popular, enfim a república.

A forma de encarar este sobressalto colectivo não pode remeter apenas para os tradicionais, mas afinal pouco eficientes, mecanismos de controlo e repressão das actividades ilegais e criminosas.

Não se pretende nem se insinua que não sejam necessários ou devam antes passar a reger-se por leis excepcionais capazes de atentar contra as liberdades e garantias constitucionais.

Esse é, porém, o risco que se corre se não se alterar a tempo - i.e: no curto prazo e com propósitos democráticos - a cultura e a organização do estado, e a relação entre este e os meios financeiros e económicos que têm reinado e irresponsavelmente gerido, afinal, a nossa vida colectiva.

2. Há anos, um colega contava que um juiz lhe revelou que o que ouvira de pessoas, inadvertidamente escutadas quando falavam com o alvo de intercepções telefónicas, permitia compreender algumas decisões e muita da inércia e ineficiência das instituições: permitia entender as mais insuspeitas conexões clientelares e familiares, geradas num país pequeno, numa sociedade com poucos valores republicanos e ávida de sucesso.

A forma como os controlos estatais - mais ou menos independentes - são realizados e a sua colaboração com o aparelho judiciário (MP e tribunais) deve, de facto, ser reformulada para poder passar a ser eficiente e credível.

Muito do que agora se sabe obriga a ponderar urgentemente a necessidade de uma rigorosa aclaração e definição de interesses por parte de políticos, mas também dos profissionais do aparelho judiciário, administrativo e estatal de controlo.

Todavia, não é só aí que uma mudança séria tem forçosamente de ocorrer.

O que importa é algo mais: rever, toda a filosofia política e administrativa de relacionamento entre interesses públicos e privados.

Só assegurando mecanismos preventivos de rigor e transparência, se pode garantir a prevalência efectiva das leis democraticamente aprovadas, a supremacia do bem público e, ainda, o são e livre exercício da actividade económica privada.

A situação, enraizada ao longo de anos, lesou os direitos da cidadania, lesando também muitos negócios sérios e muitos empreendedores honestos que foram sendo condicionados na sua actividade empresarial normal, com prejuízo evidente para eles, para a economia nacional e pulverizando a qualidade de vida dos portugueses.

Portugal vai receber uma apreciável quantia de fundos comunitários indispensáveis ao seu desenvolvimento. Urge que nos unamos para, desde já, pensarmos correctamente o controlo da sua atribuição e uso, aproveitando para, em simultâneo, organizar novas bases para a nossa vida colectiva: uma vida mais séria e, sobretudo, mais limpa. Uma vida decente.

Jurista e presidente da MEDEL - Escreve à terça-feira

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