António
Cluny – jornal i, opinião
O
que importa é algo mais: rever toda a filosofia política e administrativa de
relacionamento entre interesses públicos e privados
Os
episódios da vida económica e financeira portuguesa revelados ultimamente
obrigam-nos a reflectir com acuidade sobre a sociedade em que vivemos e na que
queremos viver.
Nessa
reflexão, não importa já situar a questão na tradicional divisão partidária de
esquerda e direita. Essa fronteira existe e sempre existirá.
Do
que se trata, neste momento, é de unir os que querem viver numa sociedade
decente e livre da constante pressão da corrupção ou da captura dos meios,
poderes e fins do estado para viabilizar negócios cujo interesse é puramente
egoísta.
Trata-se,
exactamente, da sobrevivência da comunidade nacional.
Nesta
preocupação, tanto se encontram pessoas que se consideram de direita como de
esquerda, mas que, em conjunto, se recusam a alienar o estado, como instrumento
de bem comum, a soberania popular, enfim a república.
A
forma de encarar este sobressalto colectivo não pode remeter apenas para os
tradicionais, mas afinal pouco eficientes, mecanismos de controlo e repressão
das actividades ilegais e criminosas.
Não
se pretende nem se insinua que não sejam necessários ou devam antes passar a
reger-se por leis excepcionais capazes de atentar contra as liberdades e
garantias constitucionais.
Esse
é, porém, o risco que se corre se não se alterar a tempo - i.e: no curto prazo
e com propósitos democráticos - a cultura e a organização do estado, e a
relação entre este e os meios financeiros e económicos que têm reinado e
irresponsavelmente gerido, afinal, a nossa vida colectiva.
2.
Há anos, um colega contava que um juiz lhe revelou que o que ouvira de pessoas,
inadvertidamente escutadas quando falavam com o alvo de intercepções
telefónicas, permitia compreender algumas decisões e muita da inércia e
ineficiência das instituições: permitia entender as mais insuspeitas conexões
clientelares e familiares, geradas num país pequeno, numa sociedade com poucos
valores republicanos e ávida de sucesso.
A
forma como os controlos estatais - mais ou menos independentes - são realizados
e a sua colaboração com o aparelho judiciário (MP e tribunais) deve, de facto,
ser reformulada para poder passar a ser eficiente e credível.
Muito
do que agora se sabe obriga a ponderar urgentemente a necessidade de uma
rigorosa aclaração e definição de interesses por parte de políticos, mas também
dos profissionais do aparelho judiciário, administrativo e estatal de controlo.
Todavia,
não é só aí que uma mudança séria tem forçosamente de ocorrer.
O
que importa é algo mais: rever, toda a filosofia política e administrativa de
relacionamento entre interesses públicos e privados.
Só
assegurando mecanismos preventivos de rigor e transparência, se pode garantir a
prevalência efectiva das leis democraticamente aprovadas, a supremacia do bem
público e, ainda, o são e livre exercício da actividade económica privada.
A
situação, enraizada ao longo de anos, lesou os direitos da cidadania, lesando
também muitos negócios sérios e muitos empreendedores honestos que foram sendo
condicionados na sua actividade empresarial normal, com prejuízo evidente para
eles, para a economia nacional e pulverizando a qualidade de vida dos
portugueses.
Portugal
vai receber uma apreciável quantia de fundos comunitários indispensáveis ao seu
desenvolvimento. Urge que nos unamos para, desde já, pensarmos correctamente o
controlo da sua atribuição e uso, aproveitando para, em simultâneo, organizar
novas bases para a nossa vida colectiva: uma vida mais séria e, sobretudo, mais
limpa. Uma vida decente.
Jurista
e presidente da MEDEL - Escreve à terça-feira
Sem comentários:
Enviar um comentário