quinta-feira, 4 de setembro de 2014

ESTA EUROPA NÃO VAI SALVAR NINGUÉM



Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião

A mais grave consequência do fracasso de François Hollande de que aqui falei na semana passada é, sem dúvida, a de ele vir confirmar, apesar de todas as críticas que lhe fez, a tese dos que dizem não haver alternativa à política austeritária dos últimos anos.

Não esqueçamos que Hollande tinha afirmado enfaticamente, em janeiro de 2012, que "o meu verdadeiro adversário é a finança", frase que se tornou mesmo numa das mais fortes marcas da sua campanha presidencial. Frase que o seu atual ministro das Finanças, Michel Sapin, num acrobático volte-face, transformou agora numa outra: "A finança é nossa amiga."

Mas mais do que olhar para episódios de uma política desacreditada, o importante é compreender se há, e onde é que estão, os dados de fundo, estruturais, que têm vindo a bloquear, a inviabilizar a alternativa socialista democrática na Europa.

Esses dados existem e são, a meu ver, de duas ordens. Eles encontram--se, por um lado, no conservadorismo ideológico que tem marcado a social-democracia nas últimas décadas, incapaz de produzir novas ideias e de estruturar novas propostas que façam frente à mescla ideológica dominante, cada vez mais informe, mas de clara matriz ultraliberal.

E, por outro lado, no europeísmo míope que se tornou no ópio dos europeus. A opção de François Hollande - como, mais recentemente, a do italiano Matteo Renzi - foi a de privilegiar a segunda, deixando a primeira para melhores dias. Ou seja, tem-se procurado a salvação na União Europeia, apostando numa reorientação das suas políticas. Foi certamente por isso que, no próprio dia da sua posse como Presidente da República francesa, Hollande voou imediatamente ao encontro de Angela Merkel.

A estratégia pode parecer acertada. Acontece, contudo, que a realidade europeia está construída para resistir a todas estas investidas. Hollande, de resto, nunca foi capaz e dizer com que argumentos e armas ele obteria da Alemanha uma orientação que servisse os interesses da França e dos países do Sul. Talvez porque no fundo ele saiba bem que a moeda única, tal como foi criada, é um colete de forças que impede qualquer mudança.

Tal como aconteceu nos anos 20 com o padrão-ouro, a social-democracia está objetivamente bloqueada num trágico impasse, que a leva a defender constantemente aquilo mesmo que impede a mudança que reclama. Nos anos 20, o padrão-ouro, ao fixar paridades entre moedas nacionais que eram supostas poderem converter-se em ouro, abriu as portas ao espetro deflacionista que, com a "panne" da economia real, levou a uma austeridade que se abateu pesadamente sobretudo sobre o mundo do trabalho.

Situação que só se alterou mais tarde, com as lições da grande depressão, as políticas expansivas e os acordos de Bretton Woods, que vigoraram até aos anos 70 do século passado. O euro veio, infelizmente, repor uma situação análoga à que se viveu nos anos 20 com o padrão-ouro - e foi essa situação que entretanto se conseguiu impor em termos de "necessidade".

Ora argumento da necessidade, em política, é quase sempre o mais falacioso dos argumentos: ele apresenta como neutro o que o não é e transforma em leis o que são meras opções. A ironia, é que esta necessidade lembra cada vez mais a do socialismo "científico" de má memória...

Dobrados ao argumento da necessidade, os socialistas democráticos acabam por aceitar quase tudo o que dizem querer rejeitar: os constrangimentos da gestão financista, os critérios da banca, o sobe-e-desce das agências de notação, o paternalismo burocrático de Bruxelas, etc.

O último Conselho Europeu, de sábado passado, ilustra bem tudo isto: uma desesperante incapacidade política para responder à Rússia na Ucrânia, a escolha de personalidades de segundo plano para as funções de presidente do Conselho Europeu e de alto-representante para os Negócios Estrangeiros. Por fim, lá se marcou, para o outono, mais uma cimeira sobre o crescimento!!!...Não, assim esta Europa não vai salvar ninguém - a não ser, talvez, que a deflação acabe por quebrar o império desta falaciosa necessidade e imponha uma reconfiguração radical da União Europeia e da zona euro.

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