Seu
mandato combinou afirmação da identidade indígena com redistribuição da riqueza
material. E ele rebelou-se contra limites da velha política, até rompê-los
Atilio
Borón – Outras Palavras - Tradução Inês Castilho
A
esmagadora vitória de Evo Morales nas eleições para a presidência da Bolívia
[60% dos votos, contra 25% do segundo colocado, o magnata de cimento Samuel
Doria Medina] tem uma explicação muito simples: ganhou porque seu governo foi,
sem nenhuma dúvida, o melhor da convulsionada história da Bolívia. “Melhor”
significa, evidentemente, que tornou realidade a grande promessa, tantas vezes
não cumprida, de toda democracia: garantir o bem-estar material e espiritual
das grandes maiorias nacionais, dessa heterogênea massa plebeia oprimida,
explorada e humilhada durante séculos. Não se exagera um ápice ao dizer-se que
Evo é o divisor de águas da história boliviana: há uma Bolívia antes de seu
governo e outra, diferente e melhor, a partir de sua chegada ao Palácio
Quemado. Esta nova Bolívia, cristalizada no Estado Plurinacional, enterrou
definitivamente a outra: colonial, racista, elitista, que ninguém conseguirá
ressucitar.
Um
erro frequente é atribuir essa verdadeira proeza histórica à boa sorte
econômica que se derramou sobre a Bolívia a partir dos ventos favoráveis da
economia mundial, ignorando que esta entrarou, pouco depois do ascenso de Evo
ao governo, em um ciclo recessivo do qual até hoje ainda não saiu. Sem dúvida,
seu governo fez um manejo acertado da política econômica, mas o essencial para
explicar sua extraordinária liderança foi o fato de que Evo desencadeou uma
verdadeira revolução política e social cujo sinal mais marcante é a
instauração, pela primeira vez na história boliviana, de um governo dos
movimentos sociais.
O
MAS (Movimento Ao Socialismo, de Evo) não é um partido no sentido estrito, mas
uma grande coalizão de organizações populares de diversos tipos que, ao longo
desses anos, foi se ampliando até incorporar a sua hegemonia setores de “classe
média” que no passado haviam se oposto fervorosamente ao líder cocaleiro. Por
isso, não surpreende que nesse processo revolucionário boliviano (recordar que
a revolução é sempre um processo, jamais um ato) se tenham manifestado numerosas
contradições que Alvaro García Linera, companheiro de chapa de
Evo, interpreta como as tensões criativas próprias de toda revolução.
Nenhuma está isenta de contradições, como tudo o que é vivo, mas o que
diferencia a gestão de Evo foi o fato de que as foi resolvendo corretamente,
fortalecendo o bloco popular e reafirmando sua predominância no âmbito do
Estado. Um presidente que quando se equivocou – por exemplo durante o
“gasolinaço” de dezembro de 2010 – admitiu o erro e, depois de escutar a voz das
organizações populares, anulou o aumento do preço dos combustíveis, decretado
poucos dias antes. Esta infrequente sensibilidade para ouvir a voz do povo e
responder de modo consequente é o que explica que Evo tenha conseguido aquilo
que Lula e Dilma não lograram: transformar sua maioria eleitoral em hegemonia
política — isto é, em capacidade para forjar um novo bloco histórico e
construir alianças cada vez mais amplas, mas sempre sob a direção do povo
organizado em movimentos sociais.
Obviamente
o anterior não poderia ter se sustentado somente na habilidade política de Evo
ou na fascinação de uma narrativa que exaltasse a epopeia dos povos
originários. Sem adequada ancoragem na vida material, tudo aquilo haveria
desvanecido sem deixar rastros. Mas combinou-se com conquistas econômicas muito
significativas que ofereceram, ao presidente as condições necessárias para
construir a hegemonia política que tornou possível, ontem, sua vitória
esmagadora. O PIB passou de 9,525 bilhões de dólares em 2005 a 30,381 bilhões em
2013, e o PIB per capita saltou de 1.010 dólares para US$ 2.757, no mesmo
período. A chave desse crescimento – e desta distribuição! – sem precedentes na
história boliviana encontra-se na nacionalização do petróleo e gás. Se no
passado a partilha da renda dos hidrocarbonetos deixava nas mãos das
transnacionais 82% do produzido, enquanto o Estado captava apenas os 18%
restantes, com Evo essa relação se inverteu e agora a parte do leão fica nas
mãos do fisco. Não surpreende, portanto, que um país que tinha déficits
crônicos nas contas fiscais tenha chegado ao fim de 2013 com 14,430 bilhões de
dólares em reservas internacionais (contra o 1,714 bilhão de que dispunha em
2005). Para calibrar o significado dessa cifra, basta dizer que correspondem a
47% do PIB, de longe o percentual mais alto da América Latina. Em consonância
com tudo isso, a extrema pobreza baixou de 39% em 2005 a 18% em 2013, com a
meta de erradicá-la até 2025.
Com
o resultado de ontem, Evo continuará no Palácio Quemado até 2020, momento em
que seu projeto de refundação terá passado do ponto de não retorno. Resta
confirmar se mantém a maioria de dois terços no Congresso, o que tornaria
possível aprovar uma reforma constitucional que lhe abriria a possibilidade de
uma re-reeleição indefinida. Diante disso, não faltará quem levante gritos aos
céus acusando o presidente boliviano de ditador e de pretender perpetuar-se no
poder. Vozes hipócritas e falsamente democráticas que jamais manifestaram essa
preocupação pelos 16 anos de gestão de Helmut Kohl na Alemanha, ou os 14 do
lobista das transnacionais espanholas, Felipe González. O que na Europa é uma
virtude, prova inapelável de previsibilidade ou estabilidade política, no caso
da Bolívia transforma-se em vício intolerável que revela a suposta essência
despótica do projeto do MAS. Nada novo: há uma moral para os europeus e outra
para os índios. Simples assim.
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