quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Portugal: E O JACKPOT DA AUSTERIDADE SAI A PASSOS



Daniel Deusdado – Jornal de Notícias, opinião

Andava toda a gente a desfazer o primeiro-ministro e este Governo pela excessiva austeridade e eis que, vindo do fundo das cavernas comunitárias, um francês surge em novo fato de comissário europeu das Finanças e diz: Portugal está "fora de jogo". Porquê? Porque o novo Orçamento não corta o suficiente. Avisa Bruxelas que o défice será de 3,3%, contra 2,7% nos cálculos do Governo. Um choque. E não estava isto ainda digerido quando ontem surge o FMI e anuncia pior: défice abaixo dos 3% nem em 2016... Ou seja, sinal de que os verdadeiros cortes na economia portuguesa estão por fazer, apesar de tudo o que já aconteceu...

Ora isto é uma péssima notícia para todos os portugueses. Porque o "otimismo do Governo" em conseguir fixar o défice em 2,7% só tinha um bom argumento, aliás delirante: atingir um valor recorde de cobrança de impostos através desse toque de Midas chamado "peça a fatura e ganhe um Audi" - desta vez não apenas em faturas de cabeleireiro ou oficina, mas em tudo.

Só que a desgraça das previsões internacionais representa, em simultâneo, a salvação política de Passos Coelho. Repare-se: ainda há uma semana, em pleno Orçamento, a oposição acusava o Governo de manter o perfil da austeridade, de querer continuar a cortar nos funcionários públicos e de não promover o crescimento. No entanto, em simultâneo, os comentadores especializados falavam já em eleitoralismo e "bónus" para adoçar os lábios aos eleitores. O cúmulo dessa dupla leitura aconteceu no próprio dia em que o Orçamento foi revelado pela primeira vez: os dois jornais económicos titulavam em sentido contrário: um dizia "mais austeridade" e "folga na austeridade".

Pedro Passos Coelho, que corria o risco de, afinal, hesitar no único argumento coerente que alimentou toda a sua governação, vê de repente o jogo a regressar ao seu tabuleiro. Afinal, ele estava certo em não dar folga. Até tentou abrandá-la... Mas não o deixam. Ainda assim, ele é o garante na nossa soberania e até já pode falar com voz grossa ao FMI e a Bruxelas porque saímos da subjugação aos exames da troika. Ou seja, o Governo português olha para as previsões internacionais e chama-lhes apenas isso: "previsões". Não ordens. Mas fará tudo o que for preciso para que Portugal não volte ao "défice excessivo", ou seja, mais de 3%.

Há aqui um ponto de ordem necessário. Nenhuma instituição internacional tem realmente a ideia do campo de manobra que existe por cá em arrecadar mais impostos pela simples saída da clandestinidade de negócios e empresas que não faturavam. O que isto representa em IVA, IRC e IRS é um jackpot que o Ministério das Finanças e a Direção-Geral de Impostos têm sugado até ao limite.

Claro, quando as instituições internacionais olham para os números portugueses e observam o "esforço fiscal" de que falava Miguel Cadilhe - o mais elevado da Zona Euro - duvidam que as receitas fiscais possam continuar a subir como o Governo diz. Mas, a verdade é que podem. Há milagres em Portugal? Há. Todo o dinheiro que, por boas ou más razões, é arrecadado pelo Estado representa mais sacrifício. Mas o sacrifício está no nosso ADN, é a herança salazarista. Os portugueses aguentam? Está provado que aguentam. Aguentaram décadas.

Um outro ponto: o Governo pode aproveitar o "agoiro" (ou realismo) dos organismos internacionais para se bater por eleições em outubro - e não antes do verão, como aconselharia o bom senso. O primeiro-ministro pode agora, tranquilamente, chegar a Cavaco Silva e dizer: "Quer mesmo entregar o país antecipadamente a quem tem uma estratégia despesista?". Se este presidente da República é conhecido pelo imobilismo, só isto chega para não se meter nessa guerra.

Por fim: toda esta conversa é lamentavelmente mais do mesmo. Foi assim que chegamos a um ponto em que não crescemos nem temos alternativa à austeridade. Mas a pergunta é esta: perante este cenário, será que os portugueses derrotam mesmo a aliança PSD/CDS? E se se convencerem que só Passos e Portas evitam nova bancarrota e a entrada dos credores de novo por aí dentro? António Costa tem mesmo de pensar em algo de inteligente e coerente para contrapor.

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