JOSÉ ANTÓNIO CEREJO -
Público
Um
dos mitos que José Sócrates não quis alimentar durante muitos anos foi o da
suposta fortuna da mãe. Isso valeu-lhe tantas suspeitas quanto à origem da
riqueza que ostentava, que no ano passado resolveu dar gás ao mito. Afirmou que
ela nem sabia o que fazer com tantos prédios e andares que herdara. Nessa altura,
porém, ela já tinha vendido quase tudo. E não era tanto quanto isso.
“Quando
o meu avô morreu, a minha mãe herdou uma fortuna, muitos prédios, andares, que
ainda hoje ela não sabe o que fazer com eles.” Foi assim que José Sócrates
falou pela primeira vez, em Outubro do ano passado, numa entrevista
ao Expresso, sobre a suposta fortuna da mãe. Na verdade, nesse dia, a
senhora já praticamente nada tinha, além do modesto rés-do-chão em que vive em
Cascais, de uma arrecadação em Setúbal e de uma terça parte de uma casa na sua
aldeia natal, em Trás-os-Montes.
O
apartamento de luxo em que morava desde 1998, no Heron Castilho, o prédio da
Rua Braamcamp, em Lisboa, onde o filho residia até ser preso, tinha-o vendido
um ano antes, em Setembro de 2012.
A venda rendeu 600 mil euros e o comprador foi Carlos
Santos Silva, o velho amigo de Sócrates igualmente detido pelos mesmos indícios
de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais que levaram o
ex-primeiro-ministro ao Estabelecimento Prisional de Évora.
Mas
Sócrates preferiu não o dizer ao Expresso. Disse apenas que a mãe
“conseguiu vender dois andares em Queluz que estavam ocupados.” Omitiu foi que
essa venda tinha sido feita há 24 anos, em 1990. E muito menos disse que, há
três anos, logo após a sua derrota eleitoral nas legislativas de 2011, vendeu
igualmente dois andares no Cacém.
Também
neste caso, o comprador foi Carlos Santos Silva, que resolveu pagar 100 mil
euros por um deles, que estava e está devoluto, e 75 mil pelo outro, que está
arrendado. Num prédio vizinho, também situado na Rua Dr. António José de
Almeida, está actualmente à venda um andar igual, também sem inquilinos, pelo
qual uma agência imobiliária está a pedir 64.500 euros. Moradores na mesma rua
garantem, contudo, que este género de apartamentos, com cerca de 35 anos, se
vende ali por valores entre os 40 mil e os 50 mil euros.
A
escritura do primeiro daqueles dois andares da mãe de Sócrates, Maria Adelaide
de Carvalho Monteiro, foi celebrada a 6 de Junho de 2011, no dia seguinte ao
das eleições. A segunda foi assinada um mês depois, a 7 de Julho. Em ambos os
casos, Maria Adelaide e Carlos Santos Silva, o comprador, foram representados
pelo mesmo procurador: o advogado Gonçalo Trindade Ferreira, igualmente arguido
e indiciado pelos mesmos crimes que Sócrates e o amigo.
De
acordo com o que tem sido publicado por vários jornais, mas até agora sem
confirmação documental, os 675 mil euros pagos por Santos Silva terão depois
sido transferidos por Maria Adelaide, em pequenas parcelas, para a conta do seu
único filho vivo e resultariam de vendas simuladas, destinadas a branquear a
origem de parte do dinheiro que o ex-primeiro-ministro teria depositado em nome
do amigo. Em todo o caso, e do ponto de vista teórico, as duas netas, ainda
menores, deixadas por António José Pinto de Sousa, o irmão de Sócrates que
faleceu aos 49 anos, no início de Agosto de 2011 (duas semanas depois da morte
do pai de ambos), terão sido assim prejudicadas com estas aparentes doações da
avó ao tio.
Relativamente
aos dois andares do Cacém, Sócrates disse à RTP, numa carta divulgada no
princípio desta semana, que a mãe vendeu, com a ajuda do irmão, os dois
apartamentos “por um preço total de 100 mil euros”. E acrescentou que se trata
de “um preço justo que resultou de uma avaliação”. As escrituras celebradas no
cartório da notária Isabel Catarina Portela Guimarães Neto Ferreira, na Av.
Almirante Reis, em Lisboa, não deixam, porém dúvidas: a venda foi feita por um
preço total de 175 mil euros.
Mas
estas vendas, a dos dois andares do Cacém e a do apartamento do Heron Castilho,
foram apenas as últimas e quase derradeiras. Ao longo dos últimos 32 anos, o
património que Maria Adelaide herdou, e que, afinal, não foi assim tão valioso
quanto isso, foi sendo vendido, doado e até expropriado.
Doze
andares modestos
No total, chegaram à sua posse — por herança directa do pai, pela dissolução de uma empresa de que ele era sócio, pela morte, sem filhos, de um dos três irmãos e ainda pelo divórcio — 12 apartamentos (em Setúbal, Queluz, Cacém, Cascais e Covilhã), uma arrecadação (Setúbal), um terço de uma casa em Vilar de Maçada, concelho de Alijó, um sexto de mais três andares (em Queluz e Setúbal), um terreno rústico com
Filha
do primeiro casamento de Júlio César Araújo Monteiro, o homem que amealhou
algum dinheiro no negócio do volfrâmio durante a Segunda Guerra Mundial, em
Trás-os-Montes, e depois se dedicou à construção civil em Lisboa, Maria
Adelaide só por um triz é que não perdeu uma boa parte da sua herança: a
segunda mulher de Júlio César, mãe dos dois tios maternos de Sócrates, faleceu
em 1981, cinco dias antes do marido.
Nas
partilhas feitas no ano seguinte intervieram Maria Adelaide e o seu irmão José
Júlio, também filho do primeiro casamento do pai, e os irmãos Celestino Júlio e
Júlio Eduardo, filhos de Júlio César e da sua segunda mulher, Maria Olímpia. A
totalidade dos bens deixados consistia em andares e terrenos, cabendo um terço
aos dois irmãos mais novos e um terço a Maria Adelaide e a José Júlio.
Foi
assim que, em 1982, a
mãe de Sócrates herdou um dos andares do Cacém (Rua Dr. António José de
Almeida), dois andares num prédio em Queluz (Rua Dr. António Correia de Sá, no
Monte Abraão) e um pequeno apartamento (casa da porteira, com 35 m2 ) em Setúbal (Rua
Ocidental do Mercado). Além disso, ficaram a pertencer-lhe um sexto de outro
andar no mesmo prédio de Queluz, um sexto de mais um andar em Setúbal (noutro
prédio da Rua Ocidental do Mercado) e ainda um sexto de outro andar em Setúbal
(Praceta de Macau).
Por
último, couberam-lhe um sexto de um lote de terreno para construção com 453 m2 em Setúbal (Estrada
de Algodeia), um sexto de um terreno com cerca de 17.438 m2 em Setúbal (na
Escarpa de São Nicolau), um sexto de um pequeno armazém com 600 m2 em Setúbal (Estrada
da Graça) e um sexto de um lote para construção com 300 m2 no concelho do
Barreiro.
Ainda
em 1982, os quatro irmãos partilharam também a parte que lhes pertencia no
património de uma empresa de construção civil, a Barros & Monteiro, de que
Júlio César fora sócio desde 1945 e que foi então dissolvida. Dessa partilha
ficaram para Maria Adelaide dois andares num subúrbio de Cascais (Rua Furriel
João Vieira) e uma arrecadação autónoma na cave de um prédio de habitação de
Setúbal (Rua Dr. Miguel de Sampaio e Melo).
Doze
anos depois, em 1994, na sequência do falecimento do irmão José Júlio, que
morreu solteiro no Brasil, em 1988, Maria Adelaide herdou ainda dois andares no
mesmo prédio da Rua Furriel João Vieira, em que já possuía dois, mais o pequeno
rés-do-chão em que actualmente reside, no centro de Cascais (Rua Vasco da
Gama), e um outro andar, a duzentos metros do anterior, na Rua Freitas Reis.
Um
período de dificuldades
Depois de se ter divorciado, em 1979, ficando Sócrates a viver na Covilhã com o pai, Maria Adelaide passou um período de algumas dificuldades, primeiro no Pragal, Almada, e depois em Cascais, onde morava o irmão José Júlio. Da partilha que fez com o ex-marido, o arquitecto Fernando Pinto de Sousa, coube-lhe uma pequena casa em ruínas situada na Covilhã (Rua do Norte), junto à muralha da cidade, um sótão para habitação também na Covilhã (Rua Rui Faleiro), um terreno rústico com
Esta
propriedade, aliás, só foi registada em seu nome, por usucapião, em 2002. Na
escritura que serviu para justificar este registo, apesar de aquela parte da
casa lhe ter sido adjudicada na partilha que fez com o ex-marido em 1979, Maria
Adelaide declarou que a propriedade tinha sido por ela adquirida “por volta de
1980, já no estado de divorciada, por compra verbal” ao seu próprio pai.
A
avaliação dos bens assim herdados por Maria Adelaide é complexa, tanto mais que
a maior parte deles já foi vendida há muitos anos a preços muito inferiores aos
actuais. Em todo o caso, supondo-se que todos eles ainda estavam actualmente na
sua posse, o seu valor total deveria situar-se algures entre um e dois milhões
de euros.
Quando
recebeu a herança do pai, a mãe de Sócrates residia com o filho António José,
então com 20 anos e uma vida muito complicada, e com a filha mais nova, Ana
Maria, falecida em 1988. Logo em 1982, um mês depois da partilha, vendeu a
sexta parte do rés-de-chão com que ficara em Queluz e onde, há muitos anos,
funciona uma farmácia. Nesse mesmo ano vendeu também a sexta parte de um dos
andares que herdara na Rua Ocidental do Mercado e a sexta parte da fracção da
Praceta de Macau, ambas em Setúbal.
O
melhor negócio de todos
Dois anos depois, em 1984, fez uma doação a José Sócrates de metade da casa com que ficara pelo divórcio na Covilhã, vendendo a outra metade, por 100 contos (500 euros) ao ex-marido (ver texto à parte). Em 1990, foi a vez de se desfazer dos dois andares do prédio de Queluz, andares que agora não chegam a valer 100 mil euros cada um. Entre 1997 e 1999, vendeu três dos apartamentos da Rua Furriel João Vieira, tendo doado ao filho António José, em 1997, o apartamento da Rua Freitas Reis, em Cascais.
Alguns
anos antes, com as receitas das vendas já efectuadas, comprou uma moradia em
Cobre, nos arredores de Cascais, onde viveu até a vender, em 1998. Foi então,
porque lhe tinha morrido o cão e se sentia muito só, conforme José Sócrates
disse no ano passado ao Expresso, que decidiu comprar, em Maio desse ano,
um apartamento no Heron Castilho, onde já vivia o filho, por 44.923 contos
(cerca de 225 mil euros).
Em
1998, quatro meses antes de comprar a fracção do Heron Castilho, fez, com os
três irmãos vivos, aquele que terá sido o mais proveitoso dos negócios que
envolveram a sua herança (ver texto à parte). Chegou a acordo com o Estado para que
este expropriasse o armazém da Estrada da Graça e os 17.438 m2 da Escarpa de
São Nicolau (Setúbal) pelo valor total de 298.060 contos (perto de 1,5 milhões
de euros), cabendo-lhe a ela uma sexta parte, ou seja, 49.676 contos (cerca de
249 mil euros).
Mais
tarde, em 2001, vendeu aos irmãos a sexta parte do lote de terreno da Estrada
de Algodeia, em Setúbal, e em 2003 vendeu o sótão da Rua Rui Faleiro, na
Covilhã. Nos oito anos seguintes, nos quais se incluem os seis em que Sócrates chefiou
o Governo, os registos públicos não dão nota de qualquer venda feita por Maria
Adelaide.
Já
em Junho e Julho de 2011, como já se disse, vendeu os dois andares que lhe
restavam no Cacém. No ano seguinte, vendeu o apartamento do Heron Castilho e
foi para o pequeno rés-do-chão da Rua Vasco da Gama, em Cascais, que herdara
por morte do irmão José Júlio.
Presentemente,
para lá deste apartamento, Maria Adelaide tem em nome dela um terço da casa de
Vilar de Maçada, a arrecadação da Rua Dr. Miguel de Sampaio e Melo, em Setúbal.
Por
dificuldades de identificação das propriedades nos respectivos registos, o
PÚBLICO ainda não conseguiu esclarecer se a habitação da porteira de um dos
prédios da Rua Ocidental do Mercado, em Setúbal, o lote para construção do
Barreiro e a parcela rústica da Covilhã ainda lhe pertencem.
Na
foto: Maria Adelaide de Carvalho Monteiro / Sérgio Lemos / Correio da Manha
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