quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

CUSA (2)



Rui Peralta, Luanda (ler textos anteriores)

V - A extrema-direita cubana é constituída por personagens rocambolescas (igual á direita cubana, mais culta e bem falante, excepto os populistas), mas todos eles caracterizados por um comportamento agressivo e uma violência patológica. São personagens ligados ou oriundos do submundo do crime, na sua maioria residindo em Miami, onde se refugiaram.

Aliás Miami conta no seu portfólio turístico com esta mancha, criada logo após o triunfo da Revolução Cubana. Ex-ministros e funcionários de Baptista, bufos e torcionários, carniceiros e playboys, burgueses, latifundiários e proxenetas encontraram-se em Miami e aí planearam as suas quixotescas aspirações de um dia "regressarem á sua Cuba, que linda es", traçando os trilhos da contrarrevolução.

Muita dessa gente foi contratada pela CIA, treinados pela CIA, alimentados e avençados pela CIA, participaram, alguns ainda miúdos sem barba, na invasão da Baia dos Porcos, depois disso utilizados pela CIA na América do Sul, na Operação Condor (outros surgem no Vietname como mercenários), todos eles ligados a histórias tenebrosas como o assassinato do presidente JF Kennedy ou o caso Irão-Contras. Uma dessas figuras é Luís Posada Carriles, residente em Miami, sob protecção do governo norte-americano.

Posada Carriles possui um vasto historial de actos terroristas contra Cuba, mesmo em solo norte-americano. Foi responsável pela destruição de um avião das linhas aéreas cubanas, em 1976, na Venezuela e um dos cabecilhas, em Miami, das acções bombistas efectuadas nos hotéis  Havana. Um dos seus parceiros é Orlando Bosh, cujo nome aparece em diversas acções terroristas com cobertura da CIA. Os irmãos Novo Sampoli envolvidos no homicídio de Orlando Letelier, em Washington são outros destes "combatentes da liberdade" protegidos pelo imperialismo. Um dos mais tenebrosos mercenários da extrema-direita cubana é José Basulto, fundador dos Brothers to the Rescue. Participou na invasão da Baia dos Porcos e participou em diversas acções de infiltração da CIA. Em 1902 tentou destruir centrais elétricas cubanas e o sei nome aparece, mais tarde, envolvido nas tentativas de aquisição de um avião L-39, checo e de um MIG-23.

Mas para além da cobertura e do apoio logístico e financeiro da CIA, NSA e Pentágono, a extrema-direita cubana conta com cobertura legal da Cuban American National Foundation, com fortes ligações em Washington e cujos poderosos lobys estão enraizados nos corredores do Congresso, do Senado e da Casa Branca. A Fundação financia as campanhas eleitorais dos diversos representantes conservadores cubano-americanos e conta, no seu numeroso órgão directivo, com nomes como Ileana Ros e Lincoln Diaz-Bálart.

Observando a estrutura fascistoide que a CIA criou para combater a revolução cubana e a escória com que trabalha torna-se fácil adivinhar o "modelo" que a burguesia norte-americana pretende impor em Cuba: um imenso casino flutuante, cujos porteiros são os gangsters como Bosh, Carriles e Basulto e os croupiers os senadores cubano-americanos da direita conservadora. O resto serão os bordéis, os hotéis e  Guantánamo. É a Cuba do Imperio, governada pelos lobos, feita para lobos e guardada pelos lobos...

VI - A normalização das relações entre ambos os Estados será um processo longo, não linear, com avanços e recuos, constituído por longos períodos de consolidação, momentos de estagnação e curtos períodos de avanços quantitativos e qualitativos. É um processo que depende das dinâmicas internas de cada uma das sociedades e que gerará por si novos factores nas respectivas dinâmicas. É natural que o aprofundamento das relações económicas entre dois países separados por 90 milhas marítimas seja um factor criador de tensões internas, particularmente quando as orientações políticas caminham em sentidos opostos e as assimetrias económicas são acentuadas. Estas tensões nos USA manifestar-se-ão nas elites económicas e politicas e em alguns sectores da classe média alta da comunidade cubano-americana, mas em Cuba o processo poderá gerar tensões em todos os sectores da sociedade, especialmente ao nível dos trabalhadores e das camadas mais afectadas pelo embargo e pelas reformas em curso. Estas tensões serão agravadas ainda mais pela ausência de organizações autónomas de classe.

A questão dos bandos terroristas da extrema-direita cubana, apêndices da CIA e com ligações poderosas nos corredores do poder em Washington será com certeza um ponto de forte discussão e da sua resolução dependerá, em grande medida o desenrolar do processo. A actuação destes bandos, a impunidade que gozam nos USA e os apoios institucionais de que beneficiam, constitui um caso de ingerência nos assuntos internos cubanos, um acto de desestabilização politica e social e um atentado á soberania nacional da Republica de Cuba.

E a este nível convém referir que os USA anseiam pelo estabelecimento de relações de cooperação com Cuba no âmbito da luta contra o terrorismo. No entanto será de recordar que a concepção de terrorismo dos USA parece não abranger os grupos fascistoides cubanos residentes em território norte-americano, ou que Cuba (apesar das indicações de Obama ainda não foi afastada da lista dos Estados patrocinadores do terrorismo, ou que organizações populares aliadas de Cuba, como as FARC-EP na Colômbia são consideradas terroristas.

Um dos exemplos desta dissonância é o caso de Assata Shakur, uma militante do Black Panther Party, refugiada em Cuba desde 1984, acusada pelo Estado de New Jersey e pelo FBI de homicídio. O assunto remonta a 1973, quando no âmbito de um programa de eliminação do movimento dos Panteras Negras, o COINTELPRO (cujo objectivo era o descrédito do movimento, associando-o ao narcotráfico e a eliminação física dos lideres do Partido) a residência onde se encontrava Assuta e o seu companheiro, Zayd Malik Shakur, foi cercada pelas forças de segurança do Estado de New Jersey. Do tiroteio resultou a morte de um polícia e de Zayd. Assuta conseguiu escapar e andou s monte até conseguir refúgio em Cuba, 11 anos depois. No entanto foi julgada e condenada á revelia. O Estado de New Jersey paga um premio de 10 milhões de USD pela sua captura e o FBI colocou-a na lista dos mais procurados.

Aproveitando a ocasião o Estado de New Jersey já indicou a sua intenção de levar o assunto para as negociações. Não é de esperar que Cuba entregue a activista negra norte-americana (se o fizer é porque o verde-oliva já debotou e agora é verde-legionário). Assuta não é terrorista, ao contrário de Bosh, Carriles e outros psicopatas a soldo da CIA. Assuta agiu em defesa própria, viu o seu companheiro ser abatido, reagiu a um acto ilegítimo de coerção de liberdade politica e de violência de Estado. Não cometeu qualquer acto de terrorismo, não violou o direito internacional, não era nenhuma mercenária a trabalhar para uma potência estrangeira, nem fez perigar a soberania nacional e a integridade territorial dos USA.

Assuta exerceu um direito constitucional e efectuou um acto de cidadania, ao defender-se do terrorismo de Estado. E como parece que os fundadores dos USA desconfiavam que os seus incautos sucessores poderiam enveredar por eventuais trilhos pouco recomendáveis, garantiram o direito a resistir contra actos de terrorismo de Estado...

VII - Outra questão relacionada com a normalização das relações entre os dois países é reintegração de Cuba nas instituições regionais e continentais americanas. Já em 2012, na Cimeira das Américas, realizada em Cartagena, Colômbia, os Estados latino-americanos votaram favoravelmente á participação de Cuba na próxima Cimeira, a realizar este ano no Panamá. Os USA e o Canadá votaram contra, ficando isolados e Cuba obteve uma importante vitória política e diplomática, para desespero dos sectores conservadores cubano-americanos. Os senadores Robert Menendez, democrata de New Jersey e os republicanos Marco Rubio, da Florida e Ted Cruz, do Texas (estes dois últimos candidatos às presidenciais), exigem desde então que os USA não participem na Cimeira, ao que a administração Obama responde que a participação norte-americana é fundamental e tenta apaziguar os espíritos "calientes" da direita cubano-americana argumentando que o governo cubano participa na Cimeira mas que os dissidentes estarão presentes no fórum paralelo á cimeira, para a sociedade civil, que realiza-se desde 2001, iniciado com a Cimeira do Québec.

Para Cuba as perspectivas abertas pela normalização representam uma nova fase. No momento em que ocorre um processo de renovação no aparelho político e institucional e em que são efectuadas algumas reformas no aparelho económico, a normalização representa um balão de oxigénio, é certo, mas também representa o início de um período de agudização de conflitos e interesses, de intensidade da luta de classes, sentida a todos os níveis da sociedade cubana. E isto porque o processo de normalização corresponde, também a um período de aumento das tensões nos USA, ou seja, da luta de classes na sociedade norte-americana. Quando a administração Obama refere o fracasso do embargo e da guerra económica contra Cuba, está a dizer que as novas camadas da burguesia norte-americana necessitam de arrumar a casa, em função das novas realidades geoeconómicas, assentes no Pacifico. E arrumação da casa passa pelo re-arrumar as relações com a vizinhança periférica. Principalmente quando a periferia vai ser reposicionada na economia-mundo, em função do espaço em que está inserida.

O Caribe, no Atlântico, vai assumir novas funções, criadas pelos fluxos do Pacifico...

VIII - A revolução cubana ocorreu em 1959. Um cidadão cubano que na época tivesse 20 anos tem agora 75 ou 76 anos. Um que tivesse nascido no dia da revolução tem 55 anos. Os acontecimentos de Mariel ocorreram em 1980. O cidadão que tinha 20 anos no ano zero da revolução estava com 40 ou 41 anos e o que nasceu no dia da revolução estava com 21 anos. Este cidadão colocou-se num barco ou num pneu flutuante e navegou as 90 milhas de mar até aos USA. O seu filho nascido em território norte-americano tem, hoje, 35 anos e é norte-americano.

Todo este enredo é para exemplificar uma outra problemática que sofrerá desenvolvimentos com a normalização. Para Cuba a emigração, para os USA a imigração, para ambos os cubano-americanos e os norte-americanos descendentes de cubanos. Esta é uma realidade que tem de pesar na normalização, porque é uma realidade objetiva - são pessoas - e por muitos estigmas sociais que tenham sido criados em torno da sua vivência, é um assunto que tem de ser tratado no âmbito da cidadania e dos direitos dos cidadãos o que desemboca nos Direitos Humanos. Os emigrantes cubanos nos USA (ou em qualquer outro país) são emigrantes como todos os outros. Não são massas contrarrevolucionárias, "anticastristas", "anticomunistas", nem são vítimas do "castrismo", ou da "tirania comunista" e do "socialismo tropical". Nada disso! Também não são "marginais", criminosos ou narcotraficantes, conforme acontece na distorção hollywoodesca ou nas mentes deprimidas e aterrorizadas dos que vivem stressados pelo aumento da criminalidade. Nem, muito menos, espiões da CIA ou da inteligência cubana, conforme a psicopatologia da segurança nacional distorce. São gente que trabalha, que procura uma vida melhor, como todos os emigrantes de qualquer parte do mundo e que até podem ter pequenas percentagens de tudo o que atrás foi escrito. Pessoas que ganham á partida e á chegada dois títulos, respectivamente: emigrantes e imigrantes. Dois títulos que por sua vez geram uma serie de empregos na função pública de todo o mundo, com o objectivo de os controlar. E que geram produtos financeiros com o objectivo de captar as suas poupanças. 

Mas será que as negociações em curso consideram este factor humano? Ou será que as discussões no Olimpo dos deuses, longe do mundo dos mortais, feitas nas costas dos "meros cidadãos" (que nos USA apenas servem para votar e em Cuba para porem o punho no ar e gritar palavras-de-ordem) não falam de "pessoas" e o tema exclusivo são as "oportunidades de negócio"? Com tanto segredo de Estado ainda nasce mais um Estado do Segredo...

IX - Para terminar, uma última questão: Direitos Humanos. Os USA utilizam a questão dos Direitos do Homem em Cuba para provocar desestabilização, como cavalo de Troia, recrutando agentes nos activistas dos Direitos Humanos e como instrumento de propaganda. A distorção a que os Direitos Humanos são sujeitos deixa-os fragmentados. Os USA utilizam uma "versão" amputada da Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamados pela Assembleia Geral da ONU em 1948. Nesta "versão" made in USA não constam artigos como o 23, ou o 26, por exemplo (referentes ao trabalho e á educação, respectivamente) ou ao artigo 5 (sobre a tortura) que os USA parece terem esquecido apos o 11 de Setembro (Guantánamo - outro dos assuntos incontornáveis na normalização - é um dos espaços de tortura marcados pela bandeira norte-americana).

Quanto a Cuba...bem...se lermos o CIA Worldbook ficamos a saber o mesmo que é apresentado num prospecto do governo cubano: irradicação do analfabetismo (contra 14% de analfabetos nos USA, segundo o Departamento da Educação). O género feminino recebe 15 anos de educação escolar e o masculino 14. A esperança média de vida é de 78 anos (nos USA é de 79,5) a mortalidade infantil de 4,7 por mil nascimentos (nos USA é de 6,17) e a saúde pública representa uma grossa fatia do PIB cubano (ao contrário dos USA). Neste sentido Cuba tem uma política de Direitos Humanos, que supera os USA e que foi uma conquista épica da sua revolução. Mas depois vem o resto e aí, coño! Amputaram os Direitos Humanos, igual ao que fizeram os yankees...

Por outro lado, se atendermos aos novos princípios da diplomacia internacional (baseada na preponderância da geoeconomia), a diplomacia dos negócios, teremos o assunto dos Direitos Humanos "normalizados"...

Aliás ê nessa perspectiva que o governo cubano prepara uma nova campanha de venda da sua mão-de-obra. Até aqui eram as "missões internacionalistas", factores de "solidariedade" mas que não eram mais do que uma forma de sobre-exploração dos trabalhadores cubanos (médicos, engenheiros, enfermeiros, professores ou operários especializados). Hoje, as reformas em curso e as negociações com os USA conduzem a uma inserção da mão-de-obra cubana na economia-mundo, através dos mecanismos de mercado, mantendo-se, claro a sobre-exploração. E eis um mistério com a politica social cubana, que pode ser destapado com aquela história infantil sobre a engorda do porco (ou com a da bruxa que depois de atrair as criancinhas para a sua casa, com bolachinhas, engordava-as, antes de as colocar, rechonchudas, no caldeirão?).

A História registará...até porque essa epopeia da Humanidade, que é a Revolução Cubana permanecerá para todo o sempre na memória rebelde do Futuro...

"Um país que não tem economia própria, que é penetrado por capitais estrangeiros, não pode escapar á tutela do país de que depende; ainda menos pode impor a sua vontade se ela está em contradição com os interesses do país que o domina no plano económico. (...) O povo não pode sonhar com soberania se não existe um poder que responda aos seus interesses (...) o poder popular não é somente o Conselho de Ministros, a Policia, os Tribunais e todos os órgãos do Governo nas mãos do povo; significa também que os órgãos económicos devem passar para as mãos do povo. (...) a soberania popular é o instrumento da conquista económica para que a soberania política nacional seja plenamente realizável". (Che Guevara, emissões da Universidade Popular, palestra radiofónica em Março de 1960).

Fontes 
Muse, R. U.S. Presidential action on Cuba: the new normalization? http://americasquartely.org
Reed, F. Cuba, pseudo-cubes, and the embargo http://www.lewrockwell.com
Irwin, N. One big risk for Cuba-U.S. relations: Moving to fast  New York Times, December, 18, 2014
Hufbauer, G.C. and Kotschwar, B. Economic normalization with Cuba Peterson Institute for International Economics, 2014.
Kornbluh, P. and Grande, B.L. Back channel to Cuba George Washington University Press, 2014.

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