Rui Peralta, Luanda (inclui textos anteriores deste título)
A
liberdade de filosofar, de ensinar e de aprender filosofia
Na
década de 70 do século passado, nos Camarões foram tomadas medidas para
suprimir o ensino de Filosofia e restringi-lo á Universidade. As medidas foram
aconselhadas por técnicos franceses, que decidiram utilizar os Camarões como
bancada de experimentação para uma reforma educacional francesa...mas a supressão
do ensino de Filosofia foi uma constante no ensino médio (e mesmo com fortes
restrições nas Universidades) dos países africanos de língua oficial francesa e
em menor escala nos países anglófonos. Nos países lusófonos a situação do
ensino e da prática da Filosofia é, no mínimo desastrosa (e nem foi necessário
restringir...bastou ignorar, ao sabor das diversas conjunturas internas e
externas). Mas não foi apenas a Filosofia a sofrer restrições e pressões. Na
Cote d'Ivoire, Boigny (que sempre teve a mania das originalidades) considerou
que a sociologia era subversiva e proibiu o ensino desta cadeira nas suas
Universidades...
Ao
ensino da Filosofia são feitas 3 acusações: a) não tem ligação com a realidade;
b) é contrária á "africanidade" porque critica as religiões e conduz
ao ateísmo; c) recusa a autoridade.
A
primeira acusação reflete a alienação total em que o capitalismo (em todas as
suas vertentes, inclusive na forma do seu "concorrente" o socialismo
estatizante e antidemocrático, ou na versão capitalista keynesiana - o
"rosto humano" do capital - que é a vulgata reformista
social-democrata) encerra o Homem, transformando-o numa caricata mercadoria.
A
segunda acusação parte de uma falsidade criada pelo neocolonialismo e mantida
nos paióis das munições ideológicas com que o imperialismo efectua o seu papel
de manter a posição periférica do continente. Na realidade o ateísmo não se
opõe, na sua essência, à "religiosidade" africana (de que se servem
para camuflar a exploração a que as massas africanas são submetidas) porque
esta não é cristã ou islâmica, mas pagã. O Deus monoteísta é uma identidade alienígena
que teve a função de assimilação cultural, um instrumento conceptual gerador de
assimilados (ou seja de desculturados), sendo, também, uma sobredeterminação
demasiado afastada das divindades, espíritos e espectros tradicionais. A
religião em Africa é um medicamento que alivia as dores causadas pelo
colonialismo e as mazelas infligidas pelo neocolonialismo e seus serviçais, não
uma adoração ou um exercício de fé. Por outro lado é falso que a literatura e a
tradição oral africana seja dominada pelos elementos mágicos-religiosos. Por
exemplo, os contos dos Beti, povo que habita no sul dos Camarões, contêm fortes
elementos ateus (geralmente associados á aranha) e refutam a ideia de Deus
criador. Outros exemplos poderiam ser referidos, como os da região da Cabília,
na Argélia, ou no Senegal, Gambia, Togo, Benim, sul da Nigéria, Mali, Quénia, Tanzânia,
enfim, por todo o continente, na ordem dos milhares.
Quanto
à terceira acusação é reveladora da natureza neocolonial dos governos estabelecidos
após as lutas de libertação nacional. A Filosofia é uma tomada de consciência
desmistificadora e nesse sentido é subversiva, porque é uma ferramenta
transformadora. Mas ao ser acusada desse "crime" é porque a acusação
é composta pelas elites que assumiram o Poder á custa da alienação das massas.
É evidente que se as massas populares africanas tomarem consciência da
mistificação com que as Elites as dominam, esse Poder termina e com o seu fim
inicia-se o crepúsculo do neocolonialismo em Africa. E é neste ponto
que a resposta á terceira acusação se cruza com a resposta á primeira acusação.
A Filosofia é um veículo indispensável ao desenvolvimento integral (politico,
social, económico, cultural, cientifico e tecnológico) das sociedades
africanas. Aliás não é possível revolução cientifico-tecnológica sem Filosofia,
conforme o demonstra a História do Ocidente (desde a velha Europa ao Novo
Mundo). O direito ao ensino e ao livre desenvolvimento da Filosofia em Africa
implica, pois, o direito á critica dos poderes estabelecidos e a existência de
uma reflexão teórica que só pode avançar através da livre expressão oral e
escrita e do debate publico. A Filosofia não pode ficar encerrada na vida académica,
entre os muros das Universidades, fora dos quais o filósofo é encerrado num
estabelecimento prisional ou forçado ao exílio.
A
Filosofia necessita de confrontar-se com as realidades mentais e políticas da
Africa de hoje, sendo a liberdade do debate filosófico a liberdade de intervenção
filosófica na vida real das sociedades africanas (a "conversão
categorial" referida por Nkruma).
Filosofar
na África de hoje
Existem
duas questões cujas respostas são essenciais ao percurso da Filosofia em África
e que se prendem com o ser e o fazer: o que pode ser e o que pode fazer a
Filosofia no continente africano?
A
Filosofia na Africa neocolonial não tem de ocupar-se com o abstracionismo da
condição a que o neocolonialismo reduz África (através da mistificação mitológica
ou dos mitos do mercado). A África abstrata do neocolonialismo não tem nada
para descobrir, do ponto de vista filosófico (já para a criminologia e para a investigação
policial, revela uma riqueza transcendental, nomeadamente no que respeita aos enriquecimentos
ilícitos, exportação ilegal de capitais, crimes de corrupção, etc.). A
descoberta para a Filosofia reside no "dever ser" da Nova África, na
elucidação conceptual dos africanos num mundo a promover.
Como
fazer? - Questiona o filósofo africano. Ao indagar "como" é porque a
primeira interrogação - que fazer? - Já foi respondida pelos movimentos de
libertação nacional. Por isso o filósofo africano sabe que a África abstrata
dos filisteus etnofilosóficos e dos vendedores de banha-da-cobra do
afrocapitalismo não tem nada para descobrir. África tem um passado que comporta
valores culturais mas que é, também, o momento temporal em que ocorreu a
derrota face á invasão europeia. Inverter esta situação e tornar-se
verdadeiramente independente e forte exige que África se aproprie do
"segredo" ocidental, ou seja da filosofia que conceptualizou,
fundamentou e alicerçou o progresso das ciências e das tecnologias ocidentais.
Nenhum
desenvolvimento cultural é possível em África sem existir um poderio material
capaz de garantir a soberania do continente e afirmar as suas decisões políticas,
económicas, sociais e culturais. A etnofilosofia, a negritude e as
"autenticidades", os "socialismos africanos", o socialismo
real e o afrocapitalismo limitaram-se a oferecer ao Ocidente e um suplemento de
alma, um pedaço de terra, um contrato petrolífero ou diamantífero, ou
agroindustrial, nunca procuraram apoderar-se do "segredo"
cientifico-tecnológico do Ocidente, da razão critica que o permite, do porquê
da sua superioridade técnica e material que levaram á nossa derrota.
Quanto muito importaram falacias como o marxismo-leninismo de pacotilha da
Academia Soviética (o "matrialismo" atlético e histérico) ou cópias
baratas e defeituosas do liberalismo e da social-democracia. Urge substituir a
busca da originalidade e da diferença, pela compreensão das especificidades e
pelos meios de garantirmos a inovação e aplicação tecnológica, a criatividade
cientifica e a enorme capacidade produtiva, condição inelutável da nossa
humanidade e da nossa liberdade.
Quebrar
o domínio dos ídolos tradicionais que mais não dão do que preciosas peças de
colecção das elites neocoloniais e assumir os problemas essenciais da relação
da Nova África com as culturas europeias (e com o Ocidente, de uma forma geral)
e traçar com maior objectividade e firmeza a linha de demarcação entre as
ideologias que têm, até agora, legitimado a perpetuação da servidão e da
alienação e que de forma camuflada consolidam a dependência e a construção de
uma teoria que alicerce a Revolução Africana nesta fase neocolonial.
Apenas
os países que quebraram os ídolos tradicionais, que foram
"iconoclastas" em relação ao seu passado e que apoderaram-se por sua
conta da razão critica, da conversão categorial, da ciência e da tecnologia,
reencontraram a sua identidade, a sua consciência soberana, enquanto os que
mergulharam no culto da "diferença" permaneceram dependentes, ao
ponto de diluírem-se no mercado, existindo apenas na mistificação elaborada
pelas suas elites dominantes. Por isso uma das funções da Filosofia em África ser o questionar do futuro do continente e como África poderá apoderar-se do
conhecimento científico e tecnológico.
URSS,
China, Vietname, Cuba, Argélia, Egipto, são apenas alguns dos exemplos que apropriaram-se
da filosofia do Ocidente, pela via do movimento operário europeu, das suas
criações políticas principais: a ruptura anarquista e a ruptura de Marx (por
sua vez geradora de outras rupturas). Às nações exploradas restou a via dos
explorados das nações exploradoras. A apropriação do conhecimento Ocidental
nunca poderia ter-se efectuado por outra via. Os resultados obtidos poderão ter
ficado aquém do esperado no que respeita á democratização efectiva das
respectivas sociedades, mas encetaram um caminho de progresso que criou bolsas
resistentes de rebeldia intelectual, para além da aquisição irrefutável dos
mecanismos da revolução cientifico-tecnológica. Uns foram mais longe do que
outros. Os russos e os chineses estão no espaço sideral, dominam tecnologias de
ponta e posicionaram-se na vanguarda desses conhecimentos. Descodificaram o
"segredo" do Ocidente e efectuaram a conversão categorial.
Falta-lhes, apenas, o uso da razão critica...algo que Africa deverá aprender a
equilibrar, para não cometer erros dos outros, ou repetir erros do passado.
Talvez uma leitura atenta das emancipações bolivarianas que tiveram início
neste século possam dar mais contributos no sentido da utilização da razão
critica, através do reforço da soberania popular, dos mecanismos da
participação democrática e da consciência cidadã, para corrigir a tentação
totalitária das elites burocráticas e dos populismos inerentes a estes
processos. A leitura inteligente destes processos implica a participação dos filósofos
africanos. Será desta forma que Africa poderá assumir o seu salto na conversão
categorial que transformará o continente, retirando-o da alienante condição de
objecto e tornando-o sujeito na economia-mundo.
A
relação entre a elaboração de uma teoria da emancipação, ou seja de uma
Politica que não faça passar por desenvolvimento a existência de fábricas
suplementares, de projectos agroindustriais ou de construção civil, sem
qualquer plano urbanístico, ambiental, paisagístico, enfim sem a Arquitetura de
uma concepção de cidade, de ocupação do espaço urbano, etc. Desenvolvimento não
é encher os bolsos e as carteiras à burguesia nacional e seus congéneres
estrangeiros, nem permitir que as elites burocráticas transformem-se em elites
de mercado, consequência dos processos de acumulação levados a cabo pelas
oligarquias. Desenvolvimento implica ruptura com o capitalismo de plástico - o
afrocapitalismo das oligarquias nascidas nos processos independentistas,
transformados não em pós-independência, mas em período neocolonial - e
reposicionamento na economia-mundo. A submissão prevalece porque a cultura africana
(mantida nos compartimentos estanques "nacionais" e unidimensionais,
em vez de ter evoluído para a integração continental, pluridimensional) não se apropriou
dos mecanismos de progresso explorados pela filosofia europeia, que permitiram
a revolução cientifico-tecnológica nos seus sucessivos ciclos.
Filosofar
na África de hoje não é apenas uma forma de obter uma carreira académica tranquila...É essencialmente, assumir com consciência os riscos intelectuais (e
físicos) que não são mais do que o preço de um outro futuro...melhor, mais
livre e mais justo, onde todos sejam livres e iguais ao nascer e na existência.
Um mundo em que os Direitos do Homem sejam a praxis da vida...
Talvez
esse seja o contributo do Humanismo africano para a emancipação da Humanidade.
Se assim for é enorme a responsabilidade do filósofo africano. Deve ser por
isso que o Pensador - um texto filosófico que pela importância da sua reflexão,
seria demasiado extenso em palavras - é uma escultura...os filósofos africanos
da época esculpiram para a Humanidade o conteúdo conceptual da sua enorme
responsabilidade...
PS:
1) Sobre a ruptura iconoclasta com o passado, não referi a Índia, porque essa
ruptura apenas existiu no momento da luta de libertação nacional. Passado esse
momento a burguesia nacional, que dominava o Partido do Congresso, arrecadou o
Mahatma Gandhi no panteão e preservou-o por uma questão de legitimidade do seu
Poder. O Pandita Nehru (um dos ideólogos de Bandung) e Indira Gandhi foram os
porta-vozes da burguesia nacional hindu e os executantes das suas políticas.
Hoje a Índia é governada pela extrema-direita e o seu primeiro-ministro é do
partido responsável pelo assassinato de Gandhi. Enfim... Contradições do
capitalismo BRICS; 2) Sobre a questão do cristianismo em África quero frisar o
seguinte: tal como muitos africanos identificaram-se com as ideologias do
movimento operário europeu e através delas tentaram apropriar-se do
"segredo" tecnológico e cientifico do poderio ocidental, muitos
africanos aderiram ao cristianismo pela mesma razão, por isso a importância do
cristianismo (nas vertentes católicas ou protestantes, ou outras) nos
movimentos de libertação em Africa, ou na luta contra o apartheid na África do
Sul (caso de Desmond Tutu), ou na luta dos afrodescendentes pelos direitos cívicos
nos USA (o reverendo Martin Luther King e muitos outros). Nestes casos não
estamos na presença de factores alienatórios mas sim de processos
diversificados de consciencialização. Exemplos não faltam por toda a parte onde
as lutas se desenvolvem (gostaria aqui de recordar o Padre Camilo Torres,
guerrilheiro do Exercito de Libertação Nacional da Colômbia, morto em combate).
E melhor exemplo do que o da Teologia da Libertação? Ou - noutra vertente - da
função tolstoiana das Testemunhas de Jeová (que sobreviveram aos campos de extermínio
dos nazis na II Guerra Mundial e que sofreram e sofrem perseguições e pressões
pelo sua recusa em participar nos serviços militares e lutarem pelo direito â
objecção de consciência?
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