Pedro
Ivo Carvalho – Jornal de Notícias, opinião
O
retrato da saúde do Portugal da última década é revelador do esvaziamento
progressivo do Estado social. Não foi só do desemprego que os portugueses
fugiram. Foi, também, do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Das urgências
hospitalares públicas. Das consultas. Dos exames. E dos tratamentos. Na
verdade, o impacto da crescente abertura ao privado de um mercado tão
apetecível e lucrativo como este só surpreendeu os mais distraídos. Se há
negócio que dá dinheiro, a saúde é um deles. Os dados mais recentes do Instituto
Nacional de Estatística (INE) permitem perceber que o caminho do privado foi em
sentido inverso ao do público por uma razão óbvia: o primeiro canibalizou o
segundo.
Se
já não olhamos para a oferta privada como a projeção de um mundo ao alcance de
ricos e poderosos, também já não encaramos a oferta pública com o romantismo
que a Constituição da República de 1976 lhe incutiu, nomeadamente no acesso, em
igualdade de circunstâncias, de todos os cidadãos a cuidados de saúde e na
cobertura harmoniosa de serviços pelo território.
Dirão
os mais liberais que um país que tem quase tantos hospitais públicos (113) como
privados (107) é uma estátua viva ao espírito das leis da concorrência. Convém,
todavia, notar que a aproximação entre "mercados" só aconteceu porque
o mais forte se alimentou do mais débil. "A classe média que confiava no
SNS passou para o privado", confidenciou, a propósito, o ex-ministro da
Saúde Correia de Campos.
Não
julgo que a confiança do cidadão se tenha perdido. Creio, até, que há uma perceção
generalizada de que, no fim da linha, nas urgências realmente graves, nas
doenças de foro oncológico e noutras de particular complexidade, preferimos
entregar-nos nas mãos do SNS. Porque somos mais bem tratados.
O
que a austeridade aplicada à saúde causou foi uma violenta poupança nos meios,
nos recursos humanos e nos cuidados - tornando, assim, perversamente rentável a
opção pelo privado. O doente médio faz as contas ao custo das taxas moderadoras
(ainda assim, são milhões os isentos) e ao tempo de espera por uma consulta ou
um tratamento, e opta por aquilo que, podendo ser de confiança, lhe é mais
confortável.
Cabe
ao Estado ser mais exigente na gestão da máquina, não abdicando do seu papel
regulador. Garantindo, sobretudo, que será sempre o último reduto daqueles que,
por estarem fora da mira geográfica do progresso, serem pobres, velhos ou
sozinhos, não se transformam na presa perfeita daquilo a que tão
convenientemente se chama a lógica do mercado.
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