Martinho Júnior, Luanda
1
– A União Europeia e a CELAC (“Comunidade de Estados Latino Americanos e
Caribenhos”), estiveram recentemente frente a frente a fim de melhor concertar
os assuntos de comum interesse para ambas as regiões.
Há
um contraste gritante entre as opções sobre a mesa:
-
Do lado da União Europeia adensam-se as que estão a formatar um estado
de “democracia representativa”, cada vez mais referentes aos interesses
das oligarquias europeias enfeudadas à aristocracia financeira mundial,
detentora de processos de globalização caracterizados por uma acérrima cultura
de hegemonia unipolar que inclui a opção da promoção de conflitos, tensões e
guerras;
-
A trilha da América Latina, CELAC incluída, está em processo de ruptura em
relação aos processos típicos de “democracia representativa”, o que
comporta o direccionamento da democracia para plataformas muito mais amplas, de
integração, de emergência, mas também de participação popular, de luta apontada
ao primado social, de aproximação a culturas que respeitam equilíbrio, justiça
e solidariedade social, como de respeito pela Mãe Terra, que promove a paz (a
América Latina declarou-se “zona de paz”)…
Olhos
nos olhos, ainda que num nível tímido muito por culpa da União Europeia, as
duas organizações sentaram-se à mesma mesa, havendo algum rescaldo público por
via das mensagens que dois dos presidentes da CELAC deixaram
via “Euronews”: Evo Morales e Rafael Correa.
Perante
as provas de vida, não é por falta de mensagens construtivas, com todos os
ensinamentos e experiências que elas comportam, que a União Europeia
está “fora dos carris democráticos”!
2
– A mensagem do Presidente Evo Morales referiu-se ao seu país, à perspectiva de
entrada da Bolívia no MERCOSUL, aos entraves dum melhor relacionamento do
MERCOSUL com a União Europeia, às questões que se prendem com o tráfico
internacional de droga, às estatísticas relativas ao assassinato de mulheres na
Bolívia, aos problemas inerentes às migrações humanas e, por fim, à corrupção
que afecta a FIFA, que ultimamente tem sido foco das atenções
dos “mídia” globais.
O
Presidente Evo Morales preocupou-se na transmissão das mensagens com interesse
recíproco que a União Europeia precisa ouvir, com responsabilidade e coerência,
até por que nada é embaraçoso para quem procura transparência em processos
sustentáveis de democracia.
Eis
o que ele disse em relação à migração:
"Eu
não aceito a emigração. Discordo que se deva migrar porque, o mais importante
para nós, é a forma como podemos construir, juntos, uma cidadania
universal."
(…)
Sinto
que nunca houve uma política de entendimento entre os dois continentes. Mas os
tempos são outros, são tempos de mudança. Os nossos povos precisam de mudanças
profundas, para o seu bem. Eu não aceito a emigração. Discordo que se deva
migrar porque, o mais importante para nós, é a forma como podemos construir,
juntos, uma cidadania universal. Segundo os últimos dados da Organização
Internacional para as Migrações, há mais europeus a chegarem à América Latina e
ao Caribe do que o inverso. Nós, latino-americanos, nunca aprovámos leis para
expulsar os europeus, não construímos prisões para os mal-amados imigrantes.
Mas não vemos a mesma resposta da Europa.”
3
– O Presidente Rafael Correa por seu turno debruçou-se sobre a situação
económica no Equador e na Venezuela, assim como em relação ao “caso
Assange”.
Eis
os ensinamentos que transmitiu sobre as questões económicas e financeiras:
“O
ano passado foi um ano difícil para a América Latina; a região cresceu 2,1% e o
Equador cresceu 3,8%. A economia não petrolífera cresceu 4,3%, o que nos coloca
numa posição de vantagem na região. Como o fizemos? Pois bem, conhecemos a
economia, sabíamos que a chave está na protecção da nossa produção e dos postos
de trabalho. Não fomos nas cantigas do salve-se quem puder e do mercado livre.
Privilegiámos
a nossa produção, os nossos empregos com um programa de investimento público
muito forte o que atrai investidores privados. Investimos em infra-estruturas,
energia e educação.
Nós,
latinos, somos peritos em
crises. Passámos por elas e estamos preocupados com a Europa
pois estão a cometer os mesmos erros que nós cometemos.
Falemos
da Grécia, por exemplo. Falemos das condições a que o país está sujeito:
pacotes do FMI, nós, latino-americanos, já por lá passámos. Todas estas medidas
não servem para ultrapassar a crise, trata-se apenas de liquidar a dívida. Por
um lado, eles oferecem dinheiro e fundos, por outro, impõem medidas duras:
salários baixos, eliminação de subsídios, despedimentos em massa no setor
público… tudo isto para ir buscar dinheiro a fim de liquidar uma dívida
privada.
No
fim de contas, os países endividam-se através de tratados multilaterais. Tudo
isto apenas para garantir uma dívida privada. As pessoas não ganham nada. Não
saem da crise. Vimos isto a repetir-se na Europa.
É
a supremacia do capital sobre os seres humanos em nome do chamado liberalismo
que de facto não é mais do que uma ideologia”.
Nós
passámos por tudo isto. Foi a crise da dívida na América Latina nos anos
oitenta.
Antes
de 1976 os banqueiros não vinham à América Latina, nem mesmo de férias. Após
1976 eles começaram a chegar aos magotes e iam directamente ao ministério da
economia com sacos cheios de dinheiro, subornos, oferecendo armas a ditaduras e
não promovendo a democracia. Criaram a enorme dívida latino-americana e
contaram com a ajuda da comunicação social. Eles diziam que era endividamento
agressivo, que os projectos eram ultra lucrativos e iriam permitir o pagamento
das dívidas etc… a realidade era totalmente diferente.
Graças
aos choques petrolíferos, os países árabes obtiveram muito dinheiro que foram
colocar nos bancos dos países desenvolvidos. O negócio dos bancos não é guardar
o dinheiro mas investi-lo. Eles não sabiam o que fazer ao dinheiro e vieram
investi-lo na América Latina. Eles não sabiam que os países também podiam
falhar, até 1982 quando o México declarou que já não podia pagar mais a dívida.
Foi então que os banqueiros chegaram à brilhante conclusão de que se tratava de
uma questão de sobre endividamento, o que eles não disseram é que se tratava
igualmente de um problema de excesso de empréstimos. Os bancos conheciam as
condições económicas de vários países, existiam dívidas corruptas que serviam
para comprar armas e perpetuar as ditaduras no poder.
Agora,
poderá perguntar-me se os bancos não sabiam da situação na Grécia? Os enormes
défices fiscais mascaravam outras dívidas. E agora querem responsabilizar
apenas a Grécia por isso? Ao menos vamos partilhar responsabilidades. É daí que
surgem as soluções.
Sou
o primeiro presidente perito em economia deste país. O governo conta com uma
boa equipa de peritos económicos. Somos muito cuidadosos com o nosso
endividamento. A nossa constituição proíbe o endividamento para a construção de
projectos sociais. Parece um paradoxo. Porquê? Porque por um lado eles
pressionam-nos para pagarmos uma dívida ilegal dizendo que o país precisa de
hospitais e escolas. A seguir vem o FMI e o Banco Mundial que nos oferecem
dinheiro para desenvolvimento social, eles parecem sempre bem-intencionados. Os
projectos sociais podem ser muito lucrativos mas mesmo assim são precisos
dólares para se pagarem dívidas em dólares.
Agora
só podemos endividar-nos quando os projectos geram lucros em dólares. Temos
muito cuidado com o endividamento. E temos muito cuidado com o programa de
investimento também e para onde vai o dinheiro. Podemos pagar dívidas mas
queremos apenas projectos muito rentáveis”.
4
– As mensagens que ambos os Presidentes latino-americanos deixaram na Europa,
não se prendem apenas às relações comuns entre a CELAC e a União Europeia,
apesar dos seus focos.
Elas
constituem lições universais e, no caso africano, constata-se que em relação a
elas, há mesmo muito que aprender!
Foto: Intervenção
do Presidente Rafael Correa durante a reunião UE-CELAC; mensagens que os
europeus não querem ouvir?
A
consultar:
- Saudamos a UE por contribuir com 60 milhões de euros para a
luta contra o tráfico de drogas na Bolívia, Evo Morales, Presidente da Bolívia – http://pt.euronews.com/2015/06/16/saudamos-a-ue-por-contribuir-com-60-milhes-de-euros-para-a-luta-contra-o/
- Estas medidas não servem para ultrapassar a crise, trata-se
apenas de liquidar a dívida – http://pt.euronews.com/2015/06/17/rafael-correa-estas-medidas-nao-servem-para-ultrapassar-a-crise-trata-se-apenas/
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