terça-feira, 25 de agosto de 2015

Macau. “Governo pode ter usado a lei para atingir objectivos políticos”




O desfecho do referendo civil pró-democracia há um ano mostra como a lei pode ser posta ao serviço do poder político, admite Ignacio Castellucci. O jurista é um dos poucos estrangeiros convidados por Pequim para analisar a enigmática referência ao Estado de Direito instituída por Xi Jinping e que tem consequências directas para Macau.

Sónia Nunes – Ponto Final (mo)

O elefante na sala quando se fala em Estado de Direito na China é o Partido Comunista Chinês, que se mantém como líder incontestável. Não só está acima dos tribunais e órgãos de investigação, como usa a lei para atingir objectivos políticos.

O princípio vale para a RPC e para as duas Regiões Administrativas Especiais, esclarece Ignazio Castellucci, ao afirmar que o sistema jurídico de Macau está a tornar-se híbrido e a dar forma a uma ideologia cada vez mais próxima do primeiro sistema. A forma como há um ano o Governo desmanchou o referendo civil sobre a reforma eleitoral, com um operação sem precedentes contra activistas pró-democracia alegando estar a proteger dados pessoais, ou a entrega de fugitivos procurados pelo PCC parecem mostrar que também aqui a lei pode ser usada enquanto instrumento político.

Ignazio Castellucci dá aulas na Universidade de Macau há mais de dez anos e faz parte do grupo restrito de estrangeiros convidados pelo Instituto Jurídico da Academia Chinesa de Ciências Sociais para estudar o que é isso do “Estado de Direito com características chinesas”. Foi uma função que aceitou com “grande honra”. Assina vários artigos em que desmonta o sistema jurídico chinês e as suas extensões a Hong Kong e Macau e é autor do livro “Rule of Law and Legal Complexity in the People’s Republic of China”, publicado em 2012.

PONTO FINAL – Assistimos a um uso crescente da expressão “governar de acordo com a lei” ou até “Estado de Direito” pelo Governo Central. O que isto significa para Macau?

Ignazio Castellucci – O primeiro ponto a esclarecer é que as duas expressões não são coincidentes: a primeira aproxima-se mais do “rule by law” [governar pela lei] do que do conceito ocidental “rule of law” [Estado de Direito, numa tradução aproximada ao português]. Na tradição chinesa, fa zhi e yi fa zhi guo quer dizer, de um modo geral, usar a lei para governar – para tornar mais fácil e mais eficiente governar. Ao contrário do conceito ocidental de Estado de Direito, a ideia chinesa não significa que a soberania ou a autoridade política estão subjugadas à lei. Esta é uma diferença fundamental.

A transferência de soberania de Macau e Hong Kong para a China faz com que esta questão seja também relevante para as Regiões Administrativas Especiais (RAE): foi criada uma estrutura institucional chinesa e as ideias políticas e de Direito começam a infiltrar-se nos sistemas jurídicos locais. Há, sem sombra de dúvida, um impacto e um impacto que, provavelmente, vai aumentar.

– Como é que estes conceitos devem ser interpretados na ideologia de Xi Jinping? Alguns observadores notam uma influência maoista e concluem que a principal é ideia é educar as massas e impor a ideologia do Partido. Concorda?

I.C. – Estes conceitos têm que ver com uma certa perspectiva chinesa sobre o meio jurídico, em que a lei funciona como um instrumento dentro do sistema de governação socialista. A influência dos princípios jurídicos do Ocidente dá-se a outro nível – tem que ver com questões técnicas relacionadas com a economia de mercado.

Consigo identificar alguns elementos de inspiração maoista na abordagem de Xi [Jinping], como a aversão a uma aproximação “harmoniosa” [ao contrário do seu antecessor] e a preferência por uma acção política forte. Isto, provavelmente, torna a lei numa ferramenta mais eficaz para governar, daí a ênfase dado pela nova liderança às reformas jurídicas e ao “Estado de Direito com características chinesas”.

O recurso à lei com características socialistas é um dos instrumentos de governação historicamente usado por governos comunistas para organizar e educar as massas. No contexto particular da China contemporânea, o recurso à lei pode também revelar-se como uma forma eficaz de lutar contra a corrupção em todos os níveis e conseguir uma melhor coordenação e controlo entre os governos Central e periféricos.

Num contexto mais complexo e contemporâneo, pode ser, mais uma vez, a dinâmica tradicional chinesa em funcionamento – entre o confucionismo e o legalismo, agora com o pêndulo a balançar mais para este último aspecto, após anos com Hu Jintao na busca pela “harmonia socialista”.

– É relativamente aceite que a ideia de “rule of law” na China é diferente do que no Ocidente. Pode dizer-se o mesmo em relação a Macau?

I.C. – Em Macau, o quadro teórico costumava ser português, incluindo o conceito continental europeu de Estado de Direito, em certa medida equivalente ao ‘rule of law’, desenvolvido dentro da tradição anglo-saxónica. Claro que, apesar da teoria, o conceito português foi apenas aplicado em parte na realidade de Macau, devido à enorme divisão entre a administração portuguesa e a maioria da população.

A transição trouxe uma enorme mudança para o quadro político, institucional e jurídico, com valores da China Continental a entrarem no sistema de Macau.

– Vamos exemplificar. Macau acabou de entregar a Guangdong um ex-membro do PCC, procurado por corrupção, quando não há qualquer acordo para a entrega de infractores em fuga. O Governo negou qualquer ilegalidade: diz que o que fez foi cancelar a autorização de residência, o que na prática resultou na expulsão de Macau. Foi o Executivo a “governar de acordo com a lei”?

I.C. – Por um lado, parece que sim, que é algo que resulta do “rule by law”. Por outro, faltam-me elementos para fazer uma avaliação mais rigorosa e afirmar com toda a certeza de que se trata de um exemplo óbvio de “governar pela lei” com características chinesas.

– Talvez o caso do referendo civil sobre a reforma política seja mais óbvio. O Governo deteve os organizadores alegando que a recolha de dados dos votantes foi ilegal. Agora, um ano depois, alterou a acusação, reconhecendo que a primeira, criminal, não tinha fundamento.

I.C. – Parece-me que sim, que o Executivo “governou de acordo com a lei” ao usar a legislação relativa à protecção de dados pessoais para obter um resultado político: tentar descarrilar o referendo.

O mesmo pode ter acontecido nesse outro caso [da entrega de Wu Quanshen], em que o Governo através do IPIM revogou a autorização de residência para permitir a entrega de um suspeito ao Continente.

Mais uma vez, precisava de saber mais detalhes para fazer uma avaliação rigorosa, mas estes dois casos parecem remeter para a atitude de “governar pela lei”, com o Governo a usar a lei, não pela sua função intrínseca de governação, mas para atingir resultados políticos.

Isto pode, certamente, ser considerado uma parte do “Estado de Direito socialista com características chinesas” que está a ser desenvolvido no Continente, com uma perspectiva de governar diferente da ocidental. O ângulo aqui tem mais que ver com governação e interesse público do que com expectativas individuais – um modelo que está ainda a ser desenvolvido pela liderança chinesa, com a perspectiva de gerir a transição do país e tentar encontrar um equilíbrio (difícil) entre objectivos diferentes e às vezes até contraditórios, como desenvolvimento económico e direitos individuais ou interesse público e controlo político. Muito foi feito, mas há ainda muito por fazer.

– Defende que estão a ser desenvolvidos produtos híbridos em Macau e Hong Kong. O que está a alterar a base jurídica de Macau?

I.C. – O conceito Estado de Direito de Macau (e o de Hong Kong também) está a tornar-se híbrido. O novo sistema institucional que está a sobrepor-se nas RAE é, sem sombra de dúvida, mais chinês em termos de natureza, filosofia e características operacionais.

A nova ideologia está mais próxima à das instituições chinesas em que há um predomínio do Executivo, inclui um controlo político e administrativo sobre o processo eleitoral e a intervenção directa do principal órgão legislativo da China, o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional (CPAPN), para a interpretação da Lei Básica em vez de haver uma interpretação judiciária local.

– Por exemplo?

I.C. – A Lei Básica é o exemplo primordial: apesar de ser a principal lei do território, só pode ser interpretada, com força vinculativa, pelo CPAPN em Pequim, sempre que estejam em jogo questões importantes em qualquer tribunal das RAE. Os conceitos chineses de democracia, eleições, segurança nacional e direitos humanos estão a ser introduzidos nas RAE através da interpretação feita em Pequim pelo CPAPN.

A interpretação da lei está a ser cada vez mais afectada pelos conceitos chineses de conveniência política, interpretação contextual (em vez de textual) e pela não-separação de poderes, presente desde logo no facto de a lei fundamental não ser interpretada por um tribunal, mas antes por um órgão legislativo. As acções administrativas nas RAE estão cada vez mais a ser geridas de acordo com directrizes feitas no Continente. Tudo isto são, em termos jurídicos, produtos híbridos da nova transição.

– O Diário do Povo escreveu: “A constituição do nosso país, como lei básica, expressa o sucesso do Partido em liderar as pessoas”. Há aqui alguma mensagem para Macau?

I.C. – A mensagem aqui é para toda a gente, não apenas para Macau: enfatiza o papel do Partido Comunista no actual sucesso da China.

As mensagens mais específicas para as RAE estão noutros documentos e discursos, como o de “Amar a Pátria e Macau”     que Hu [Jintao] apresentou aquando da aprovação em Macau da lei de segurança nacional, em cumprimento do artigo 23 da Lei Básica, ou, mais recentemente, no critério do “amor à Pátria” na escolha dos candidatos às eleições em 2017 para o Chefe do Executivo de Hong Kong.

– Em 2011, Zhang Xiaming, então vice-director do Conselho de Estado para os Assuntos de Hong Kong e Macau, afirmou que aqui não se aplica o princípio de separação de poderes. Aceita esta ideia? É consistente com a Lei Básica?

I.C. – Esta é, na verdade, uma das muitas áreas de hibridez. A afirmação de Zhang é, até certa medida, rigorosa. Um exemplo muito claro desta nova característica nos sistemas jurídicos das duas RAE é o papel do CPAPN na interpretação da Lei Básica. A principal lei de Macau só pode ser interpretada, sempre que o caso for sensível, pelo principal órgão legislativo do Continente – que será livre de fazer uma leitura adequada ao caso tendo em conta directrizes políticas, em vez de padrões técnico-legais.

Do ponto de vista ocidental, isto representa uma interferência clara de um órgão político e legislativo no processo judicial. Do ponto de vista chinês, faz todo o sentido uma vez que a doutrina da separação de poderes está em confronto com a teoria socialista das instituições, que coloca todo o poder nas pessoas (e, portanto, no Partido Comunista), com os órgãos de soberania apenas a cumprir funções, em vez de exercerem os poderes que lhe são inerentes.

– Como perspectiva a Macau enquanto Estado de Direito nos próximos cinco a 10 anos?

I.C. – Mais sínico e mais global: as ideias do Continente sobre política, instituições e governação vão infiltrar-se no quadro geral; as práticas e normas comerciais vão preencher a cena económica; a tradição jurídica portuguesa ainda terá um papel, menor talvez.

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