JOSÉ PACHECO PEREIRA - Público
Esta
“coligação negativa” é a resposta à outra “coligação negativa”, a do PSD-CDS,
que assim funcionou nos últimos quatro anos.
1. Quem
semeou os ventos do modo como se respondeu na Europa à crise financeira e
bancária, dos produtos tóxicos e dos bancos perto da falência recolheu a
tempestade de uma “economia que mata”. Os bancos foram salvos, pelo menos para
já, mas o crescimento estagnou ou andou para trás, as diferenciações sociais
agravaram-se, o desemprego cresceu exponencialmente, os salários baixaram, os
direitos laborais diminuíram, quando não foram extintos, as disfunções sociais
agravaram-se. Todas. Veja-se a “crise dos refugiados”, espelho do estado da
Europa.
2. Quem
semeou os ventos da passagem da crise tóxica dos bancos para a “crise das
dívidas soberanas”, uma invenção política alemã cujos efeitos perversos
alargaram e aprofundaram a crise nos países do Sul, mas também em França,
recolheu um reforço do poder de Merkel e Schäuble, o fim do directório com a
França e o poder único de Berlim e dos seus mais directos aliados, e uma
fractura entre duas Europas cujos efeitos estão apenas no início. A Europa já
não é o que era e muito menos é o que se desejava que fosse. É um poder
cinzento e duro, afastado de qualquer esperança e que serve para pôr na ordem
povos que se arrogam de querer outra coisa.
3. Quem
semeou os ventos de uma Europa assente na política de Diktat, de imposição
de acordos cegos e desiguais, quem estiolou tudo à sua volta, quem levou a
Europa a abandonar regras democráticas, entregar os poderes dos parlamentos
nacionais aos burocratas de Bruxelas e aos políticos de um Partido Popular
Europeu cada vez mais conservador e à direita recolhe fenómenos como a
crescente sensação em muitos países de que a sua soberania deixou de ter
sentido e de que, com ela, se perde a democracia que só a proximidade permite,
o acentuar da crise profunda dos partidos socialistas e da sua posição de
mandaretes do PPE, e efeitos como o do Syriza e a vitória, num dos mais
importantes partidos socialistas da Europa, de pessoas como Jeremy Corbyn.
4. Quem
semeou os ventos de uma ideia autoritária e antidemocrática do “não há
alternativa”, afastando do direito ao poder assente no voto todos os que faziam
parte de partidos e movimentos remetidos para o “inferno” de estar fora do
“arco de governação”, excluiu milhões de europeus que votam “errado” de sequer
terem o direito de poderem governar sem serem sujeitos a humilhações, como
aconteceu com os gregos e dividiu os partidos como sendo de primeira (os que
aceitam que “não há alternativa” e fazem a política económica e social da
direita) e de segunda, centristas críticos da Europa, sociais-democratas,
socialistas, esquerdistas diversos, comunistas, excluídos da
democracia, em que votar não significa nada, porque estão “de fora”
do euro e das “regras europeias”.
5. Quem
semeou os ventos de que nada há a fazer porque “não há alternativa” recolheu uma
enorme instabilidade dos sistemas políticos, com a perda muito significativa
dos votos nos partidos do “arco da governação”, mesmo que ainda estejam no
governo, uma crescente ingovernabilidade, e o ascenso de movimentos de
contestação do actual estado de coisas de natureza muito diferente. Ainda não
se deu uma clara ruptura, mas os partidos do “não há alternativa” têm cada vez
menos votos. E a abstenção cresce, assim como várias manifestações de
contestação do sistema democrático e da “classe política”, e uma deslegitimação
acentuada de governos, parlamentos, partidos e presidentes.
6. Quem
semeou os ventos da arrogância, de um governo que não ouviu ninguém e não falou
com ninguém, que recusou qualquer entendimento com o PS na aplicação do
memorando, a não ser aqueles que se destinavam a dar caução às suas políticas
impopulares, que fez o que queria, muitas vezes na ilegalidade, fora da
Constituição e da lei, outras vezes na fronteira da legalidade, que mais do que
ninguém embateu em sucessivos vetos do Tribunal Constitucional, que substituiu
a boa-fé do Estado pela má-fé e pelo dolo, que, sem hesitar, quebrou contratos
com os mais necessitados, ao mesmo tempo que lembrava a intangibilidade dos
contratos com os mais poderosos, quem transformou o fisco numa máquina sem lei
que não respeita ninguém (como antes Sócrates fez com a ASAE), quem acusou os
outros de serem “piegas”, de terem culpa por estarem desempregados, de serem
velhos do Restelo, antiquados e fora da moda do “empreendedorismo”, quem
dividiu velhos e novos, empregados e desempregados, funcionários públicos e
outros trabalhadores, quem mentiu (e mente) descaradamente a todos sem pudor
nem desculpa recolheu a tempestade de um número significativo (e maioritário)
de portugueses não os querer ver nem pintados. A herança de radicalização que
deixaram dividiu como nunca o país e os portugueses e permitiu que uma parte
maioritária daqueles cujo único voto se pode somar – os que votaram contra o
Governo – sejam capazes de quase tudo para não os deixar governar, mesmo
correndo imensos riscos. O impulso que permite sequer imaginar que possa haver
um acordo PS-BE-PCP, uma mudança abissal da vida política portuguesa, fechando
quarenta anos de discórdia e exclusão, não é sequer o da esquerda versus a
direita, mas apenas pura e simplesmente o de “nem pensar em vê-los lá de novo”.
O PS, que podia ter compreendido isto e ganhado as eleições, andou a pedir
licença para ser bem visto nos salões da coligação e obviamente perdeu-as.
7. Para
isso, estão dispostos, insisto, a quase tudo e são de facto uma “coligação
negativa”, o que muitas vezes é mais seguro e sólido do que uma “coligação
positiva”. E a tempestade recolhida com os ventos da arrogância dos últimos
anos é que ninguém quer sequer admitir falar com ou permitir que o PaF governe,
mesmo sendo o partido mais votado, mas com o pequeno problema de que, não tendo
a maioria absoluta, não tem maioria nenhuma. É que esta “coligação negativa” é
a resposta à outra “coligação negativa”, a do PSD-CDS, que assim funcionou nos
últimos quatro anos. Se não houvesse base constitucional para isto acontecer, seria
quase um golpe de Estado, mas, como há, não é. Tanto não o é que várias vezes
vários políticos eminentes da área do PaF a defenderam no passado contra
Sócrates, por exemplo, ou a exerceram na prática ao votar o PEC IV. Quem com
ferro mata com ferro morre.
8. Quem
semeou os ventos de uma governação agressiva e autista recolhe hoje a
tempestade de ficar isolado. O PaF tem legitimidade para governar, e admito que
o Presidente indigite Passos Coelho como primeiro-ministro, mas não existe
qualquer legitimidade para exigir que o PS permita que passe o governo ou o
Orçamento. Uma tem um sujeito (o PaF), outra tem outro sujeito (PS), e, não
havendo entendimento, a solução de um governo minoritário do PaF não é viável.
Não existe um direito divino ou exclusivo para que uma coligação, mesmo tendo
ganho, exija que os outros aceitem a sua política, quando tem uma maioria
contra. O Parlamento é um local de geometria variável e, em democracia, cada
peça dessa geometria move-se como entende, com os riscos inerentes. Em teoria,
a perda da maioria absoluta não implica necessariamente que não se possa
governar, como já aconteceu no passado, mas também não implica actuar como se
uma maioria relativa fosse absoluta. A tempestade que a coligação recolheu foi
fruto de ter radicalizado de tal modo as fracturas da vida política portuguesa
que colocou PS, BE e PCP unidos contra ela, um feito único.
9. Quem
semeou os ventos de um governo que se comportou como uma verdadeira “coligação
negativa” recolhe a tempestade de uma outra “coligação negativa”. O que move um
lado e outro é, dito mais prosaicamente e de forma plebeia, o “pó” que uns e
outros reciprocamente se dedicam. E não se pense que é apenas do lado PS-BE-PCP
que há “pó”. As coisas entre o ignorante e o absurdo que se dizem sobre os
novos bolcheviques que vêm aí com Jerónimo de Sousa com a faca na boca e
Catarina Martins de cabelo à norte-coreano, dos insultos do catálogo completo
contra António Costa e toda a gente que não alinha no discurso dominante,
esmagador, catastrófico, do “não há alternativa” ao PAF, mostram que, a haver
radicalismo, ele está bem representado dos dois lados.
10. Pode
fazer-se a pergunta mais retórica e hipócrita: e Portugal? E os custos para
Portugal? A pergunta é hipócrita por só ter sido feita agora por aqueles que
viram com indiferença a destruição maciça de recursos e vidas, a arrogância do
poder, a incompetência e o favorecimento, a perda da independência muito
para além da presença temporária da troika cá, mas
institucionalizando a troika lá, sem nunca perguntarem por Portugal.
Mas podem perguntar por Portugal. Está mal, pode ainda ficar pior, mas aquilo a
que assistimos hoje não nasceu hoje – nasceu ontem.
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